19 novembro 2006

Gostaria de dar sua opinião?

Eu ainda vou conseguir, eu ainda vou ter coragem. É sempre assim: penso que vou fazer, chega na hora não sai. Venho pelo meio das araras, sacola na mão, às vezes nem isso, só tinha entrado ali para dar uma olhada, e vejo de canto de olho a funcionária, de pé ao lado do totem, na saída da loja. Disfarço, faço cara de quem está preocupada com a bolsa de valores de Nova York, às vezes mergulho a cara dentro da sacola, como se estive procurando algo, ocupada. Mas não adianta. A moça dá um passo adiante, toda irritavelmente gentil, e se dirige a mim (a mim! a mim! tinha tanta gente em volta! ou não tinha?):
- Por favor, gostaria de dar sua opinião?
Hrrrrrrr. É claro que eu não gostaria. Senão, teria ido em direção ao totem. O que eu faço? Dou um sorrisinho mais irritante ainda do que o jeitinho da moça e lá vou eu com o meu dedo no botãozinho verde, o do satisfeito.
Por que nunca consigo apertar o vermelho? Ao menos o amarelo?
Nem se trata de 'não satisfeito' ou 'mais ou menos satisfeito'. É só uma loja, é só uma passada, é só mais uma blusa ou mais uma calça. Só isso, não houve tempo de ficar isso ou aquilo.
Se é só para constar, por que não aperto o vermelho? Só pra variar um pouco. Será que, se apertar o vermelho, o gerente da loja leva um choque por meio wireless? Será que vão me seguir no shopping, perguntar o que houve, me levar pruma sala com banheira de hidromassagem e champanhe para tentar reverter minha opinião? Será que vão ampliar meu limite no cartão? Claro que não. Então, por que não consigo apertar o vermelho, droga?!?!
Será que a loja não desconfia do resultado nunca? Não desconfia que suas funcionárias ficam escolhendo pessoas incapazes de conseguir apertar o vermelho?
Ainda vou apertar o vermelho.

18 novembro 2006

Perdendo a festa

Sabe aquela frase que diz mais ou menos isso: 'a vida é o que acontece enquanto a gente se ocupa fazendo planos para o futuro'?
E sabe aquela outra, que afirma que um filme, uma cena dele, uma sacada, uma mensagem pega cada espectador de forma diferente, porque toca em experiências particulares e tals?

Pois bem.

Esses dias vi o filme "O ano em que meus pais saíram de férias". O ano é 1970, os pais são da esquerda, as férias se tratam de um sumiço forçado deles, fugindo da repressão da ditadura, e o "meus" ali indicam o personagem principal: Mauro (Michel Joelsas), um garoto com lá seus nove anos apaixonado por futebol. Apaixonado pelos pais também, obviamente.
E é aqui que entra a primeira frase ali de cima: ocupadíssimo com, primeiro, a proximidade e, depois, os jogos da Copa do Mundo de 70, Mauro vai viver um dos momentos mais terríveis da vida dele e de quebra do Brasil. Vai vivê-lo como uma criança vive, sem saber detalhes, mas desconfiando da gravidade - como de resto, provavelmente, boa parte da população à época.
Os pais "saem de férias", e o guri segue a vida. Embora à espera do pais, ansioso, distrai-se com a iminência da Copa - quando crianças, como é bom contar a vida com antes e depois de certas datas, né?
Só que a promessa dos pais de estarem com ele na estréia do Brasil não se confirma. E no dia que Mauro acreditou ser o mais importante da sua vida - o Brasil na final -, reencontra a mãe, definhada por ter sido torturada. O pai morreu. E ele descobre tudo isso, longe da TV, sabe-se lá se conseguindo ou não perceber - talvez não - os fogos e os gritos de alegria das pessoas, comemorando o tricampeonato do Brasil no México.

Quando vi isso - a possibilidade de, em algum momento da nossa vida, sermos catapultados para uma realidade quase paralela, mas seguramente alheia ao dos outros -, me lembrei de mim mesmo no Réveillon de 1999 para 2000.
Era uma data meio mágica, completamente simbólica. A virada do século, ainda que a rigor matematicamente não fosse. Quem nunca pensou: hm, como estarei na virada do século?
Eu pensava, claro.
Pois nessa noite eu estava em um quarto de hospital, com minha mãe, irmãos e cunhadas. Nem o silêncio do ambiente permitiu ouvir os fogos estourarem nos céus de Porto Alegre. O clima era pesado demais, duro, como uma nota grave de piano. Eu via as luzes pela janela, e pensava nas outras pessoas. Do nosso lado, meio inconsciente, meio lá meio cá, estava meu pai. Nessa virada de ano tão mágica, 2000!, foi difícil pensar em esperança. Meu pai morreria sete dias depois.
(Aqui, se explica a lembrança da segunda frase no início do texto.)
Quando vi o Mauro perder a comemoração da Copa de 70, sobrepujado, atropelado pelos acontecimentos da sua vida (e, no caso do filme, do Brasil), eu lembrei desse dia. O filme me colocou naquele quarto de hospital outra vez, e eu vi de novo a lágrima escorrer do canto do olho do meu pai quando eu me estiquei cama adentro para lhe dar um beijo e, putz, desejar-lhe um feliz ano novo.

Às vezes, a festa simplesmente não é para a gente.

***
O filme
Bom, meigo. Mas apesar de todo o talento do menino que faz o Mauro, o meu personagem preferido é a Hanna (Daniela Piepszyk).

11 novembro 2006

Um filme inconveniente

Ontem, assisti ao filme Uma Verdade Inconveniente – um documentário sobre o trabalho de alerta para o aquecimento global que o ex-vice presidente do EUA Al Gore vem fazendo. Confesso que não sabia que ele se engajara nisso há tanto tempo. Que entrou na política para ver se conseguia mudar isso. E começou aí o filme a se encaixar na minha zona de emoção enquanto espectadora.
Ok, é muito irônico que um norte-americano, um cara que esteve perto do cargo dito mais importante do mundo (a presidência dos EUA) defenda com tanto afinco o cuidado com a emissão de CO2 na atmosfera. Os EUA não ratificaram o tratado de Kioto, que prevê isso – a nível diplomático, de blábláblá, claro, mas prevê. Mas é justamente aí que o filme começa a te pegar: Al Gore deixa claro que foi lá e não conseguiu fazer grande coisa. Ou seja: essa constatação só deixa mais evidente o tamanho do problema.
Bom, e aí o que o Al Gore decidiu fazer? Putz, quando ele falou o que decidiu fazer, eu simplesmente percebi um nó sendo lentamente atado na minha garganta e meus olhos iam nublar sem volta...

Tá, o documentário é documentário, mas tem uns toques (truques) cinematográficos, meio clichês, mas que impressionam os mais sensíveis: uma e outra história pessoal, um e outro discurso mais contundente, câmera fechada no rosto do cara convicto, música ao fundo, como se ele fosse o mocinho dos filmes de Hollywood que a gente vê desde criança. Reconheço tudo isso, mas o nó na minha garganta não desatou.
Quando Gore viu que não havia Vontade Política (em caixa alta, sim, porque nesse filme fica claro que ela é uma entidade à parte, incompreensível, indomável) para que se evitasse uma catástrofe (para a qual cientistas americanos alertam desde os anos 60!), ele decidiu que ia sair pelo mundo contando o que sabe de pessoa em pessoa.
Cara! Consegue compreender a força disso? Ele vai falar de um em um!
Ok, ele foi vice-presidente dos EUA, vai ser recebido com facilidade e provavelmente muitos de sua platéia estarão lá apenas para fazer um H. Mas haverá aqueles que se impressionarão com a Verdade Inconveniente e contarão a outros, a outros e a outros.
Isso é emocionante! Até por ser quem é, o Gore está usando essa condição para, putaquepariu, tentar salvar o planeta.
Que caralho!
Você consegue se imaginar fazendo um milésimo disso na sua vida inteira?!?!?!? Que porra que você veio fazer nessa vida?
Não importa se ele vai conseguir alguma coisa, entende? Importa que ele está fazendo, que ele acredita no que está fazendo.
Depois que o filme acaba (e com eles os truques melodramáticos), me acalmei. Saí do cinema com o nó mais frouxo na garganta, mas com a inconveniente verdade me cutucando a consciência. Não só a inconveniente verdade do aquecimento global. Todas as inconvenientes verdades que a gente conhece e pelas quais não luta, não faz nada, às vezes sequer reconhece.
Que filme inconveniente praqueles que acham que 1) não têm nada pra fazer nessa vida e que 2) seus problemas (inhos, inhos) cotidianos são os mais importantes do mundo.

04 novembro 2006

Ai, que vontade

Acabei de andar num jeep pela primeira vez. Acabei de DIRIGIR um jeep pela primeira vez.
Adorei.
Pintura mais ou menos, motor de não sei o quê, caixa de não sei qual outro, freio meio baixo demais, marchas duras, aceleração alta, pastilhas um tanto gastas e alguns pingos que podem ser vazamento.
Azar.
Meus cabelos estão embaraçados até agora. Tudo bem.
Tá difícil de resistir à vontade de comprá-lo.

Foi a Gláucia, do Margarida, que...

me apresentou a esse texto. Não, eu não corro. Quer dizer, corro, mas tão pouco que nem me atrevo a afirmar que corro. De competição, então, nunca participei, a não ser uma rústica do colégio pelas imediações do Julinho. Mas eu adoro suar. Eu gosto da sensação de cansaço físico, é como se eu me sentisse realmente viva e integrada a algo mais instintivo e natural. Acho suar algo sensual, sexy. É por isso que gosto desse texto, que a Gláucia pôs no blog dela e eu descaradamente copiei aqui:

“Corro porque sou kantiana. Não sigo os instintos da minha natureza, mas, sim, torno-me aquilo que não sou por uma razão maior. Procuro sempre dominar minhas deficiências, sendo a preguiça a maior delas. Poderia estar perfeitamente preguiçosa, mas não estou.Outra ressalva, em minha alma, é que ela é triste. Só que não posso estar triste, pois devo, à minha obra, maior discernimento e, às minhas filhas, a força para criá-las fortes. Então também corro porque o contrário disso seria chorar, reclamar sem nada fazer e fumar mil cigarros. Dizem que quem tem a lua em Peixes, no zodíaco, como eu, tem tendência aos vícios. Corro, portanto, dessa queda para a autodestruição, pois não existe melhor química contra depressão do que a endorfina.Correr, assim, é meu remédio. A minha meditação. Correndo sozinha, estou em minha melhor companhia. Faz mais de dez anos que sigo fiel a essa saudável rotina. Já adquiri até uma sesamoidite crônica, mas tenho um bom médico de pés, e palmilhas especiais.Dizem, os invejosos, que correr envelhece. Bom, o tempo envelhece. E eu prefiro enfrentá-lo na minha melhor forma. Nunca tendo sido gostosa, correndo, jamais ficarei caída.Há os que garantem que correr é um modismo urbano. Não sinto dessa maneira, ou jamais teria me tornado adepta. Sou avessa a coisas “in”. E, como também não sou dada a coletividades, sequer costumo correr em grupo. Mesmo nas corridas dos circuitos, das quais eventualmente participo, quando não estou sozinha, estou com um amigo silencioso.Corro, acima de tudo, porque gosto. Às vezes, chego quase a chorar, tamanha a emoção. A sensação é de que estou deixando o que fui – meu passado é um resíduo que defendo, mas não carrego – para trás; e meu corpo agradece, renovado. Todos os músculos bem preparados para minha defesa, ou daqueles que de mim precisarem.Sim, corro porque posso. Agradeço aos bons joelhos que possuo, que me sustentam sem reclamar. Claro, tenho métodos, tenho cuidados, tenho as minhas trilhas prediletas. Dou o melhor de mim nesse projeto, pois dependo dele para viver. Porque corro, não fumo mais. Porque corro, alimento-me melhor. Porque corro, não perco as sextas na biritagem – adoro correr aos sábados.
Concluindo, corro para não preencher perfis óbvios. Pois correr, no meu caso, é praticamente uma contradição. Porém insisto nisso, encarando como uma manifestação política, talvez mais significativa que votar. Corro, por causa disso, com toda a elegância e humildade. Aprendendo a cuidar bem desse corpo que Deus habita.Por fim, eu corro porque acho bonito gente correndo, e quero que as minhas filhas vejam que todos somos capazes de mudar. E porque não suporto fazer regimes – é isso: corro porque adoro comer pizza à noite.”
(fernanda young, na revista O2 de setembro)

28 outubro 2006

Forma e conteúdo

Tô pra dizer que o formato criado pela Globo, para o último debate entre Alckmin e Lula (a ordem aqui é meramente alfabética), quase garantiu sozinho a audiência ontem. A platéia foi formada por eleitores indecisos – praticamente uma metáfora para o que cada um de nós foi durante a campanha cujas opções não traziam novidade e ainda incluíam um cara que nos impedia moralmente de acreditar nele outra vez.
A produção buscou 300 indecisos junto ao Ibope e escolheu 12 perguntas, no caso 12 pessoas, para formarem/guiarem o conteúdo dos três primeiros blocos do debate. Alckmin e Lula ficavam circulando por ali, ora se aproximando da platéia, para responder a uma pergunta, ora querendo a câmera, para falar comigo, em casa. Divertido era que eles ficavam a centímetros entre si, se criticando. Então, fica alguém ali, afirmando que tu mente, e tu fica firme, ao lado, cool, quase como se estivesse sendo elogiando, quando o movimento mais natural seria no mínimo um soco na mesa.
Enfim, a prova definitiva de que política é palco, representação – claro, principalmente se está na TV, em rede nacional, na Globo, num debate com uma forma tão democrática. Dava para desligar a TV? Não dava. Ao menos, deu para segurar até o Lula começar a soltar suas frases fora do script, coisa que ele faz muito mais naturalmente do que o Alckmin. Fora o fato de ver o Bonner, em momento semideus, mandando calar a boca o próximo presidente da República porque o tempo da resposta se esgotou.
Mas o que eu queria dizer é que genial mesmo foi a singeleza, a fragilidade, o nervosismo, a sinceridade com que 12 brasileiros se levantaram, a maioria seguramente com pernas trêmulas, dentro de suas roupas novas – muitos deles ali provavelmente depois de sua primeira viagem de avião, sua primeira saída de seu Estado, sua cidade, sua rua –, e fizeram suas perguntas, tão genuinamente ingênuas como necessárias.
Destaque para o gaúcho de Porto Alegre, que lá no final tocou no ponto nevrálgico da disputa – quiçá de toda a história política brasileira, mas especialmente nesses tempos: corrupção. Chance para o Alckmin massacrar o Lula. Tinha de ser um gaúcho (ops!).
Acontece o seguinte: alguém ali naquela arena saiu satisfeito com o conteúdo? Vi os repórteres da emissora entrarem ao vivo no Jornal da Globo, logo em seguida, perguntando aos candidatos o que acharam do debate. Não os vi fazendo o mesmo para algum dos 12 indecisos que levaram sua pergunta e sua cara para a rede nacional. Saíram de lá, eu acho, física e emocionalmente aturdidos com o momento fama-cidadão, mas quantos entenderam as respostas? Mais: quantos conseguiram domar a emoção e refletir racionalmente sobre o que faziam ali? A produção da Globo foi dormir feliz, tenho certeza. E os indecisos? Ok, Loraine, quem estava preocupado com o conteúdo ali, né? “Debate é assim mesmo, um diz que sim, outro diz que não”, comentou Lula depois, com a naturalidade que diversas vezes o exime da reprovação por afirmações questionáveis como essa.
É por isso que eu acho que ganhou o duelo final quem mais à vontade ficou com o formato do debate.
Ok, antes ganhou a Globo, que montou o circo com profissionalismo e seriedade – mas o profissionalismo e a seriedade de uma emissora de TV, com a superficialidade que lhe é inerente.

26 outubro 2006

Que susto

Dia desses um colega de trabalho olhou bem pra mim, sério - ainda que eu estivesse de lado, pude perceber seus olhos presos em mim, como fazemos quando queremos dizer para alguém algo que nos parece verdade -, então, olhou bem pra mim, daquele jeito que exige que a gente retribua o olhar, o gesto solene, e disse:
- Loraine, tu parece que não faz falta, mas tu faz.
Olhei pra ele, ele continuava me olhando, sério. Por segundos, fiquei surpresa com a frase, que me bateu como uma verdade vinda não sei de onde, sem que eu nem imagine por que, nem saiba explicar o sentido ou o efeito dela - e conseqüentemente qual seria a função no mundo de uma pessoa assim, no caso eu. Em seguida voltei a olhar para o lado, como se ele não tivesse dito nada de importante.
Eu estou mudando de área outra vez no trabalho, é a isso que ele se refere na frase, porque deixaremos de ser colegas diretos.
E a tarde seguiu, os dias seguiram, e eu ignorei - tenho ignorado - o efeito da frase, como a gente faz com inúmeras coisas que a gente não quer entender na vida. Ou acha que não quer. Ou acha que não precisa entender, porque não está vinculado com nada que nos é imediatamente vital.
Mas eu sei que não vou esquecer essa frase.
E, se ela for uma verdade, eu não sei se quero continuar assim. Eu não sei se posso/sou capaz de mudar essa minha condição. Não sei se precisa mudar. Eu posso apenas ser assim?

08 outubro 2006

Somos quem podemos ser

“Quem Somos Nós?” não é um bom filme nem um bom documentário, embora seja um pouco de ambos. Por mais generoso que o espectador seja, nenhum caminho convencional leva ao adjetivo bom. Mas o filme tem feito um relativo sucesso. Como explicar? Ficou (se ainda não está) um tempão em cartaz, gerou programas de debate, as pessoas comentam, gerou marola – como a gente costuma dizer no jornalismo. Os cadernos de variedades ignoraram solenemente. Não é um filme para as massas. Como poderia ser para as massas um filme sobre física quântica? Até por isso, repito: um filme sobre física quântica (sim! física quântica) tem dado o que falar. E pensar. Você viu?
Resumindo bem, dá para dizer o seguinte: o filme mostra, com depoimentos/opiniões/argumentos de físicos e neurocientistas, que a realidade é uma construção mental. Vivemos o que somos capazes de imaginar, pensar e, logo, acreditar. A rigor, criamos a vida que conseguimos criar. Ou: que grande parte dos problemas é fruto de como os percebemos. Eu acho perturbador: transferir para nós mesmos a responsabilidade por nossa felicidade ou desgraça é terrível. É inaceitável, na grande maioria das vezes. Sempre buscamos explicações fora da gente. Assim o pensamento ocidental ensinou.
Na verdade, não sei o que pensar sobre o filme, que assisti há algum tempo já. Mas tenho a tendência de acreditar no que ele mostra. Acho que ele já vale só por mostrar um monte de gente nos cutucando com a possibilidade de... “Somos quem podemos ser/ Sonhos que podemos ter” - Engenheiros do Hawai, lembra?.
Eu lembrei de mencionar o filme aqui porque li uma frase no editorial da última Vida Simples. Lá pelas tantas, o Leandro, editor da revista, disse: “Porque o debate gera luz”. Ele estava falando das reuniões de pauta, de como surgem as grandes sacadas da revista, mas eu lembrei direto da personagem principal do filme. Ela é muda. Sua vida é cinza. Sua vida não existe, ela é triste. Sem luz. Claro que ela vai dar uma virada. Está no filme para exemplificar os argumentos dos físicos e dos neurocientistas. Mas a mudez é um detalhe interessante. Quem me conhece até imagina por que acho interessante.

Mas não, não é porque eu falo pouco que esse detalhe me chama a atenção. Também é por isso, mas não é só por isso.
Tá bem... É por isso.
Mas é que tem muita gente que fala, fala, fala e não gera luz – seja lá o que isso signifique.
Ok, só tô desviando o assunto... :)

23 setembro 2006

Tô com a Cicarelli

Quer saber? Tô com a Cicarelli ou com quem quer que seja a guria aquela do vídeo.
Eu não tinha imaginado exatamente tudo aquilo, mas, antes mesmo dessa fofocada toda estourar, eu já tinha pensado que não se pode morrer sem um dia dar e ganhar um beijo dentro do mar. Ok, minha imaginação é um pouco mais pueril ou romântica, mas sabe-se lá o que vem depois de um beijo, né?

Certo, sabemos o que pode vir depois de um beijo. Então, tô com a Cicarelli. Com ou sem as algas.

Eu acho que as pessoas deviam é parar para pensar o que faz elas gostarem tanto de ver o vídeo e comentar a vida dos outros. Aí, tu vais dizer que a guria estava num lugar público e tal, que praia deserta só existe em filme tipo Lagoa Azul etc... Mas se há uma coisa que foi pro espaço é o limite (espacial mesmo) do privado e do público, vai dizer que não? Se tudo tivesse sido filmado na piscina do jardim cercado com altos muros da casa dela, todo mundo ia ver igual. E comentar e julgar - sem questionar sua curiosidade ou a motivação da criatura que conseguiu as cenas. Que cansaço.

10 setembro 2006

Segura a mão da criança!


Estive no lugar certo e na hora certa ontem e hoje. Sesi Bonecos do Brasil, uma das manifestações populares mais legais que já vi. Com certeza, a mais legal do ano em Porto Alegre. Na Redenção, pairou o sotaque do nordeste. O povo fez sua parte e tomou o parque para receber os mamulengos. Música, desfile, apresentações de teatro, shows, exposição, bolo de cenoura, de couve, pipoca, churrasquinho, pastel e quentão. Festa feita. Muito, mas muito legal. Que bom que eu vi tudo de perto. Que pena se você perdeu.

09 setembro 2006

O nulo e os burros

Entendo perfeitamente os argumentos de quem condena o voto nulo. De fato, alguém terá de ser eleito, diz a legislação. Aqueles que apontam o voto nulo como burro estão raciocinando dentro das regras do jogo.
Mas só um pouquinho, peralá. Vamos tentar dar um passo para trás e olhar o todo.
Os últimos acontecimentos políticos mostraram que o respeito às regras do jogo não orienta exatamente a conduta do caras que ganham o poder. Por que que tamanha devoção às regras do jogo vale só no momento em que o eleitor tem chance de agir? Ainda que nada das sacanagens conhecidas tivesse ocorrido, se o eleitor prefere o nulo, alguma coisa ele está querendo dizer.
Acho que falta um pouco de sensibilidade para olhar a coisa mais pelo todo, a despeito das regras eleitorais. Se o eleitor sabe que não vai mudar nada - pelo menos naquele pleito - votando nulo, e ainda assim quer anular, pôxa, tem algo errado aí. Se os defensores do voto não-nulo (e os políticos) não sacam isso, de que lado está a burrice? As regras do jogo não podem se sobrepor ao fim em si.

13 agosto 2006

Glup!

Era cedo, tava frio, nublado, e o vento era gelado. Aí, começou a chover, a roupa colou nos ombros e pingos d'água se penduraram na ponta do nariz. Mas tava bom. E eu não era a única.

10 agosto 2006

Meu voto invisível

Tenho assistido ao Jornal Nacional com uma expectativa que há muito tempo não sentia. O JN não está entre meus telejornais preferidos – que vêm a ser, primeiramente, o Bom Dia Brasil, às 7h, e o Jornal da Globo, lá pela 0h, em segundo lugar; mas, como se nota, existe uma certa incompatibilidade de horários para que eu consiga assistir, na seqüência, aos meus dois noticiários prediletos.
Pois o JN renovou minha atenção ao abrir uma série de entrevistas com os candidatos à presidência. Ok, eu não vi a do Alckmin, mas isso não significa nada, porque o Alckmin está fora de cogitação para a Loraine-eleitora.
Os candidatos têm 11min30s para falar, o Bonner sempre avisa. E o meu nervoso começa. Tenho sempre a sensação de que há 20 perguntas para serem feitas, porque fica aquele clima pré-interrupção, a Fátima com a mãozinha suspensa, o Bonner com a boca entreaberta pra emendar uma questão, o candidato falando, falando, falando uma resposta três vezes maior do que a necessária e o reloginho correndo. Se há uma coisa que a faculdade de jornalismo não ensina (bem, há muitas coisas...) é interromper entrevistado. Que nervoso que me dá. Parece um jogo. Parece prorrogação de decisão de título com o teu time precisando de um único gol.
Mas acho que o nervoso também é provocado pela postura dos dois entrevistadores. É postura mesmo: embora as perguntas estejam sendo bem cruas, sem rodeios ou confetes (ok, EU NÃO VI A DO ALCKMIN), o Bonner e a Fátima me parecem mais agressivos. E arrisco dizer que isso tem um pouco a ver com a frustração geral com a classe política. Com o festival de mentira e corrupção revelado sem trégua, se perdeu um pouco o respeito, o pudor. E, como o jornalismo sempre teve demais disso ao tratar com as “vossas excelências”, a decepção acabou por dar uma boa aparada (natural/inconsciente) nos excessos da relação mídia-políticos. Acho.
Ok, mas o que eu queria dizer é que acho que defini meu voto ontem, na terceira entrevista da série. Na verdade, não foi o voto que defini, foi a minha postura. Eu não tenho esperança que ele ganhe. Mas eu decidi ser humilde. Decidi parar de acreditar que o próximo vai, sim, resolver os problemas do país que o outro não conseguiu. Desisti de pensar grande, desisti de pensar que o Brasil vai dar certo em quatro anos, basta pôr lá a pessoa certa. Desisti de tudo isso e vou pensar pequeno, miúdo. Vou votar pensando a longo prazo, tipo: é preciso pôr o primeiro tijolo para ter uma parede, né? Tipo isso eu decidi. E esse primeiro tijolo é qualquer coisa, mas qualquer coisa mesmo de uma daquelas que o candidato de ontem disse que ia fazer. Qualquer uma que for feita eu já vou me sentir em paz com o meu voto. O entrevistado foi o cândido Cristovam Buarque.
Qualquer coisa que seja feita na área da educação terá valido a pena. O futuro vai me dar razão. O Brasil precisa de sutilezas. Precisa de ações que não pareçam grandes ações. Precisa de atos meio que invisíveis, para que nem a teia de corrupção nem o olho gordo da oposição os perceba. O Brasil precisa ser humilde e começar do começo, com atos invisíveis, mas altamente transformadores – e isso só ocorre numa área: educação.

08 agosto 2006

Ei, amigos

Se estou lendo algum blog de amigo ou conhecido e volto pra cá, na maior parte das vezes acho meus textos muito chatos. Quanto drama. Quanta instrospecção. Quanta emoção (?!). Quanto pretensão. Ok, o blog é meu, eu faço dele o que quiser, mas às vezes parece que não é assim: é ele que faz de mim o que quer. Ops. Tá, chega.
Eu só entrei para dizer (após ter mais uma vez a sensação de que sou uma chata) que eu não sou tão chata assim, ok? Ei, amigos, testemunhem a meu favor! Não deixem esses textos acabarem comigo! :)
***
Uma vez, quando eu era bem mais novinha, pensei em ter uma agenda/diário pros dias tristes e outra pros dias alegres. Mas daí fiquei com medo de não preencher as duas igualitariamente... Desisti. Achei melhor tocar a vida sem a expectativa sobre qual agenda eu pegaria no final do dia.
***
O receio acima pressupunha um relato sincero, imparcial. Mais uma vez, meu jeito chato prevalecendo. Porque eu simplesmente poderia usar as duas agendas para brincar, relatar o mesmo dia nos dois cadernos, um sob olhar triste, outro sob olhar feliz. Algo como Melinda & Melinda, sabe? Seria, ao menos, a garantia de um exercício ficcional todo dia.
Mas não tive essa boa idéia, na época. O chato, em geral, não vê alternativas na situação, não vê o todo. Ok, vou parar de dizer que sou chata. Ficar dizendo isso é mesmo muito chato.

06 agosto 2006

E quando entra minha amiga nessa história?

Teve uma vez que entendi um filme pelos olhos de uma amiga. Estávamos no cinema, lado a lado, a história se desenrolava na tela há algum tempo e foi só quando percebi sua emoção discreta (quase sem deixar marcas depois que as luzes se acenderam), já no final do filme, é que entendi a força dele.
Eu disse a ela que escreveria sobre isso no blog logo em seguida, o tempo passou, ela foi pra São Paulo e, porque me ligou ontem, lembrei da vontade de contar o episódio aqui.
Há várias produções, principalmente recentes, que se valem da brincadeira da metalinguagem para pôr um filme dentro de outro. Estrela Solitária é francamente isso – e foi nesse filme que a reação de minha amiga valeu o ingresso.
Estrela Solitária é (aparentemente) ingenuamente isso: um filme dentro de um filme. O recurso nem parece importante, porque é a história de um ator que larga as filmagens de uma produção repentinamente, num surto, para rever suas escolhas, rever o caminho percorrido – aquele batido acerto de contas com a gente mesmo, nada raro em muitos filmes. E ele chuta tudo para o alto, porque esse tudo não o motiva, não lhe preenche mais, e vai reencontrar o passado, que significa uma mãe, uma paixão e dois filhos deixados para trás numa cidade, por sua vez, ainda mais perdida, no meio do nada. E, como o próprio personagem, o espectador realmente se fixa nesse lado do filme e põe à parte, em segundo plano, as filmagens – a dificuldade da produtora, do diretor de terminar a obra sem a presença do ator principal.
A necessidade da finalização do filme está presente em todo momento, na figura, inclusive, de um cara (advogado? Não lembro) que vai atrás do personagem/ator para que ele volte e termine as filmagens. Como o personagem, o espectador pensa toda vez: “Que merda, deixa ele resolver o passado dele, porra, deixa ele reparar os erros, fazer as pazes com os filhos e tal”. A gente fica nessa torcida até que se dá conta de uma sensação sutil, mas que se agiganta sem volta: qual filme está dentro de qual? Qual é a História dentro da história?
Evidentemente, era na “vida real” que se concentrava a carga emocional do filme: o reencontro com a mãe, com a (ok...) mulher de sua vida, a descoberta dos filhos e a sensação, claro, de que fez tudo errado (mas como saber disso antecipadamente? Depois da vida percorrida, fica fácil, né?). Era ali, nessas cenas, que o personagem e o espectador sofriam. Era para aquilo tudo que esperávamos a virada, o desfecho, o grande desfecho. E enquanto ele não vinha, segurávamos todas as emoções que estávamos experimentando no escuro. Só que o desfecho não vem. Não há nada mais o que fazer na “vida real”. O personagem revive todo aquele passado como num sonho (e a fotografia do filme por vezes lembra uma atmosfera onírica, um silêncio como que quando mergulhamos no fundo da piscina e nada mais é ouvido, só há nós mesmos e os personagens de nosso sonho). Até que, depois dessa espécie de regressão, ele tem de voltar e cumprir seu contrato com a “vida de mentirinha”. Tem de voltar às filmagens. Ele acorda para a vida que escolheu. Todo o resto fica como estava (claro que não fica, mas não é esse realmente o efeito de um sonho? Tudo continua igual aqui fora, mas algo em você mudou depois dele). Então, o espectador percebe que vinha torcendo por algo impossível: mudar o passado. Dito assim fica até superficial, mas não é, até porque já sobraram talento (dos atores), sensibilidade (sua, se vc não é um idiota) e tempo suficientes para que o espectador tenha se identificado com essa angústia de simplesmente aceitar o que não pode ser mudado.
E quando entra minha amiga nessa história?
Bem, o personagem volta para terminar o filme para o qual foi contratado. E a cena do filme dentro do filme é a de sua despedida da mocinha. Eles se despedem apaixonadamente. Ele terá de deixá-la, com coragem, desapego, uma força de herói (que ele não teve na vida real). Uma cena boba, de um filme de sessão da tarde, mas o estopim perfeito que faltava. Explico: foi nesse momento que vi minha amiga se emocionar. Eu também me emocionei nessa hora. E arrisco dizer que mais gente se emocionou na sala só nesse momento. Nesse momento, na “história de mentirinha”, é que nos permitimos soltar um pouquinho da emoção contida durante todo o tempo da “história de verdade”. Por que chorar só no momento que parecia menos real? É evidente que a emoção geradora das lágrimas não tinha rigorosamente nada a ver com a história da mocinha, que sequer conhecíamos. Talvez porque ali o choro era mais fácil, mais inofensivo, menos revelador de nós mesmos. Ali, com a mocinha, o choro nos atingia menos.
Foi aí que percebi a impossibilidade de definir que filme estava dentro de qual – e mais: definir que história pessoal está dentro de qual em nossas vidas. Foi aí que percebi como enrolamos a nós mesmos quando se tratam de emoções. Como nos atrapalhamos com escolhas emocionais, exatamente como o personagem do filme. E, então, acho que, se tive a intenção, no início do filme, de julgar o personagem ou suas escolhas, desisti – como acabaram fazendo a mãe, a ex-mulher, os filhos, o advogado e ele próprio.

04 agosto 2006

Plantão

Caminhava pelos bairros Farroupilha e Cidade Baixa hoje e vi e ouvi várias vezes o chamado. Era um carro com aqueles sistemas de som. A voz grave e séria explicava que um cachorrinho havia se perdido ou sido roubado. Os vidros e a lataria do veículo exibiam cartazes/reproduções de fotos do animalzinho. A mensagem frisava o fato de ele estar doente, de precisar de cuidados regularmente. E gratificava-se quem o encontrasse, claro.
Até aí nada muito extraordinário.
Acontece que o texto em tom grave era precedido por aquela musiquinha do plantão da Globo. Aquela com a qual todo mundo pára o que está fazendo e fixa os olhos na tela da TV, a espera da notícia que, diferentemente de todas as outras do dia, não podia esperar. A vinhetinha do flash extra, fora dos telejornais, sabe? Bem, então eu fiquei algumas horas ouvindo de tempos em tempos a musiquinha e, por causa dela, acionando a pesada sensação de atenção que ela provoca -- desnecessariamente.
Mas que a idéia do cara foi boa, ah, isso foi, né?
Tomara que o cachorrinho esteja bem.
Na real, eu queria que a vinheta do plantão tocasse agora na TV avisando que o bichinho foi encontrado. Ok, menos, Loraine...

Elogio

Uma vez cheguei da rua, ainda morava com meus pais... Mais anterior ainda: meu pai ainda era vivo. Mais mais anterior ainda: eu acabara de me formar em jornalismo. Cheguei em casa, oi, oi, tudo normal. Daqui a pouco, meu pai veio com essa:
- Li tua monografia.
Tinha um rascunho impresso sobre a minha escrivaninha.
Eu queria lembrar aqui exatamente o que ele disse, mas não guardei a palavra para abrir o travessão e me autorizar a ordem direta. Lembro apenas (apenas?) que ele fez um comentário positivo, tinha gostado mesmo, seus olhos diziam.

Foi a surpresa que me impediu de gravar a frase exata que ele disse. Mas o fato era esse: meu pai, em algum momento daquela tarde, tinha parado o que quer que fosse para ler, espontaneamente, algumas dezenas de páginas do meu trabalho final de curso. Nem precisava ter gostado. Ainda seria o maior elogio que uma pessoa podia receber mesmo que ele não tivesse gostado.
O elogio está na consideração (para dizer o mínimo), evidente no gesto e interesse espontâneos.

Dois verbos

Pertencer
Aprender

Pertencer para aprender ou aprender para pertencer, tanto faz. Pode ficar sozinho cada um, mas os dois verbos meio que aprendem um com o outro, meio que se pertencem.

Lead

Claro que não é meu. É do Fabrício Carpinejar, num texto* sobre o poeta Manoel de Barros:

“Manuel de Barros tem uma letra miúda, a caligrafia emendada e tímida. Em um mínimo cartão, aproveita os dois lados, curte toda borda. Não desperdiça uma vírgula da resma. Qualquer fresta é a festa do grafite. Com lupa, atinge-se o tamanho normal de leitura. A olho nu, é um canteiro de formigas no açúcar da folha. É necessário cheirar o papel para entender o que ele escreve.”


*Revista Vida Simples, edição de agosto

30 julho 2006

Te organiza

Tenho pensado várias coisas, mas não consigo desenvolver nada. Já inventaram um nome para isso: confusão mental. O bom é que a gente consegue ir tocando aquelas coisas que fazem os outros acreditarem de que está tudo bem com a gente. Então, ninguém me perturba. Ninguém sabe da minha confusão mental – quer dizer, agora é possível que algumas pessoas saibam, né, porque estou escrevendo aqui.
Se bem que o próprio fato de eu estar escrevendo isso mostra que a confusão não é tão grande assim. Escrever organiza. Na real, eu estou falando da confusão mental para poder dar algum sentido às frases que se seguirão a essa (confusa) introdução.
Antes delas, porém, lembrei de uma coisa ao escrever ‘escrever organiza’. Durante um tempo, fiz aula de pilates com uma professora que dizia isso antes de cada exercício: “Te organiza”. Eu achava genial. Tipo assim: te prepara. E eu acho mesmo que a gente é capaz de “dizer” coisas aos músculos. Quando você pára e pensa em algum músculo, é óbvio que alguma carga elétrica, energética, sei lá o quê, ele recebe. Como que não? Afinal, estamos vivos. Mexemos o dedo porque pensamos em mexer o dedo, certo? E o que faz mexer o dedo são os músculos servidos, evidentemente, por terminações nervosas cuja origem está na nossa cabeça. Então, ao atender o “te organiza”, pensar nisso, eu acredito que realmente me organizava, a nível músculo-esquelético – o que em muitos casos é o que basta para a gente se sentir melhor.

Que viagem, né? Confusões mentais encontram terreno fértil por aqui, como se vê... Eu tô precisando urgentemente de um “Te organiza”.

Curtas:

1) Vai dizer que tu não torce quando vê uma pessoa correndo para pegar o ônibus que já ameaça partir?
2) Os morangos são uma farsa. Gordinhos, vermelhinho-vivos, com aquela folhinha verde por cima. Perfeitos. Parece que saíram de um desenho animado. Mas cadê o sabor? A pêra, por exemplo, não engana ninguém. Você olha pra ela e pensa “não posso esperar muito de algo com esse visual”. Vai lá e come por motivos do tipo que faz a gente comer pipoca de isopor: só para mastigar algo. A pêra é o chuchu das frutas. O morango, não. O morango é muito do enganador. O morango é o publicitário das frutas.
3) Me irritam muito as pessoas que entram no ônibus e deixam para achar todas as moedas do mundo – para pagar a passagem – quando já estão na roleta. Custa levar no bolso e agilizar? Parece que pegar o ônibus foi uma decisão de última hora. Claro que não foi.
4) Já escrevi aqui sobre os tipos de cobradores de ônibus? (adoro fazer essa perguntinha blasé, tipo pra deixar a pessoa curiosa e ao mesmo tempo mostrar que tenho algo a dizer sobre aquilo, mas como não sei ainda como dizer, faço a perguntinha querendo parecer simpática, tentando garantir a audiência previamente, porque é claro q eu sei que ainda não escrevi aqui sobre os cobradores).
5) Só falo de ônibus, né... Eu gosto de ônibus... Gosto de transportes coletivos. Acho muito estranho aquele monte de carros, engarrafados, com cinco lugares disponíveis e apenas um ocupado.
6) Minha Porto Alegre ideal teria ciclovias por toda parte. Minha Porto Alegre ideal teria porto-alegrenses adeptos de transportes alternativos. Minha Porto Alegre ideal também perderia um naco de cada lado da avenida Ipiranga, para dar lugar a uma pista para caminhada, um calçadão, uma ciclovia, de ponta a ponta. O Dilúvio seria navegável também. E nos arredores da cidade eu construiria uma cidade cinematográfica para que os pichadores e os artistas de rua mostrassem o que tanto têm a dizer em marquises e pilares. Os trabalhos mais legais, mais corajosos, iriam para cidade verdadeira, depois de escolhido por voto popular. Eu abriria um planetário no topo de algum dos morros de Porto Alegre e acabaria de vez com o muro da Mauá e o Guaíba seria despoluído, evidentemente. E nunca, jamais, em tempo algum, cercaria os parques.
7) Casaizinhos de estudantes caminhando juntos, abraçadinhos no final de tarde pelas calçadas próximas da escola, são bonitinhos, né? Os vestidos com o uniforme do colégio militar me comovem em particular. Por que será?
8) O fim de tarde tem algo de definitivo, solene, né? Como se não fosse se repetir no dia seguinte. Aquele monte de gente indo pra algum lugar, desordenadamente. Trabalho cumprido, sabe? Todo mundo liberado para ir. Buzinas, engarrafamento, paradas lotadas, pressa, apesar das caras conformadas. Incrível como tantas vidas diferentes podem se parecer tanto nesses horários clássicos. Todo mundo vai pra casa no mesmo horário, meu Deus? Nunca esqueci uma frase que li num texto do Paulo Fancis. Ele descrevia alguma avenida de Nova York, eu acho, mas pra mim serve para qualquer lugar. A grosso modo, ele dizia que esse momento “fim de tarde”, com todo mundo indo de algum lugar pra outro, deveria ser parecido com o do juízo final.
9) Do jornalismo impresso, minha preferência gráfica é pela capitular. Adoro capitulares. Organizam tudo.
10) Vai dizer que tu não sente um certo prazer ao ver que a pessoa que corria conseguiu pegar o ônibus? Boba essa sensação, passageira até, mas que faz um bem... Por que eu nunca corro pra pegar o ônibus que chegou antes de mim à parada?

02 julho 2006

Entendeu?*

Hoje fiz um troço simples, que há tempo não fazia e que simplesmente adoro. Que bom, né? Você também? Tomara que sim.

O que eu fiz foi bem simples, bem bobo até. Talvez você nem ache bom, nem entenda por que adoro. Mas como eu adoro mesmo, como me faz bem mesmo, eu realmente não me importo com sua opinião. É assim quando a gente tem a serenidade da certeza: não se importa em se explicar. Apenas faz.

Eu vesti uma roupa confortável e que me protegesse do vento, porque não havia muito sol. Pus um boné, para meio que me esconder mesmo, enfiei uns tênis velhos e abri a mochila. Lá coloquei algumas coisas que pudessem parecer um kit sobrevivência. Algo que me desse a idéia de que levava tudo do que precisava. Que me desse, enfim, a idéia de que partia para uma aventura, a idéia de que me desprendia de algo (da rotina, da semana de trabalho - a que passou e a que virá -, do último telefonema, das respostas que não vêm, das coisas por fazer...). O kit: uma toalha pra sentar no chão, algo pra ler, água e um pouco de dinheiro, rádio e fones de ouvido, bloco e caneta. Por fim, desci e resgatei a bicicleta do quartinho escuro sob a escada do prédio.

Mochila nas costas, adoro sair por aí, sem saber muito ao certo que caminho tomar. Isso na minha própria cidade, sem hora para voltar. Já se comportou como turista na sua própria cidade? Olhando pras coisas com curiosidade? Parando no meio do caminho para matar a fome ou a sede com alguma coisa simples? Taí uma coisa que só depende de disposição. De espírito.
Entendeu?

É claro que sabia para onde estava indo, e que em tal hora mais ou menos voltaria, e que não sou turista, e que Porto Alegre não é tão turística assim. Mas acontece que, se nada disso fosse verdade, eu estava preparada também. Se me perdesse, se não voltasse no horário, se me sentisse turista, se POA revelasse uma paisagem de turismo, tudo bem. Eu ia conseguir perceber, porque era o que eu queria.
Entendeu?

E o legal é que coisas não previstas aconteceram mesmo. E eu voltei para casa com a sensação de que realmente tinha ido sem saber para onde, que realmente voltei na hora não planejada, e que fui uma turista na minha própria vida por algum tempo.
Entendeu?



* Isso que eu não estava preocupada em me explicar... Como a gente se contradiz quando escreve, né?

Domingo no parque

O que merece quem veste seu cachorro com roupas? Cinqüenta chibatadas? Cem?
E quem, não contente em vestir, o faz de modo ridículo? A pena de morte, evidentemente.

Impagável e absurdo(s)

Eu nem sonhava em fazer jornalismo ainda e lembro de perguntar à minha mãe – na verdade, era mais uma pergunta pra mim mesmo, em voz alta, porque minha mãe não ia saber, não era uma resposta que mãe sabe, a mãe estava ali como coadjuvante -, no encerramento do Jornal Nacional, sobre o que diabos falavam os apresentadores, quando subiam aquelas letrinhas e vinha a cortina (a música-tema do noticiário, por assim dizer).
- O que será que eles falam...? – eu me perguntava, meio pensando, meio falando.
Minha mãe sorria, ria. Da minha curiosidade, ou de perceber que nunca havia pensado nisso.

Pois bem, eu fiz jornalismo, e cresci também, então, dá para imaginar o que eles falam. Quando é o Bonner e a Fátima, cogito até um “Vamos, querido?”, “Está liberada, querida?”.
Mas eu não sei ler lábios não... A Globo descobriu uns guris que sabem e criou um programete em cima disso dentro do Fantástico durante a Copa do Mundo. É o Jogo Falado – e caberiam aqui algumas considerações sobre os limites da privacidade de cada um (incluindo técnicos, que já não têm nenhuma no país do futebol), ou sobre a mania que a gente tem de querer ver se os outros, os que estão na TV (embora saibamos que são reais, de carne e osso, gases e arrotos), se eles realmente são como a gente, falam/fazem as coisas que a gente falaria/faria, vide Big Brother.

Ok, não caberia nada disso. Papo chato. Vou deixar isso pros mestrandos em comunicação.

O que eu quero dizer é que o Felipão ganha até no Jogo Falado. Foi a vez dele nesse programete, agora a pouco, no Fantástico.
Im-pa-gá-vel!

Se bem que, ao descobrir o que o Felipão falou durante os jogos, meu deus, a seleção portuguesa é um caos absoluto! Nunca ninguém está no lugar que é para estar! Fora isso, o Felipão confirma o que todos já sabem: ele é uma figuraça.

Pensando bem...

O Felipão com voz de Zeca Camargo é a dublagem mais absurda que eu já (ou)vi nos últimos tempos.

Se fosse coisa da RBS, eles iam pôr o Radicci a dublar...


(então, tá, não resisti:) da série "enquetes-tolas-que-fazem-qualquer-um-parar-sua-vida-para-pensar-na-resposta-até-se-dar-conta-de-que-é-uma-tolice-que-não-leva-nada-ou-ninguém-a-lugar-algum (apenas os bem-humorados):
- Quem deveria fazer a voz de Felipão? Diga aí! Cid Moreira? Chuck Norris? Aquele cara que faz o Garota Verão? O Lombardi? Quem?

01 julho 2006

Les Bleus font chuter le Brésil (1-0)

E agora?
O Brasil está fora da Copa. Perdeu para a França nas quartas-de-final (e agora vão começar a dizer que a França é o algoz do Brasil, que o Brasil tremeu de novo, enfim, esse papo futebolístico que usa sempre as mesmas figuras/expressões para explicar as coisas, não importando os fatos, o contexto ou as personagens em campo).
Portugal foi para a semifinal. Ganhou da Inglaterra nos pênaltis. E agora os brasileiros, tirando os colorados, os corintianos e o Luxemburgo, vão dirigir para o Felipão a esquizofrenia que vinham apontando pra Seleção do quadrado mágico. Saco. Deixem o Felipão em paz!
O Brasil nunca teve torcida. Esses dias li no jornal que um alemão perguntou pruma repórter gaúcha por que os brasileiros não torciam lá nos estádios da Copa. Era verdade do lado de cá também. Não torciam, faziam onda.
Sempre tive a sensação de que as pessoas repetiam-se umas às outras, sem personalidade, porque alguém uma hora tinha começado a fazer daquele jeito, mas não se sabe quem. Como uma ola, de estádio mesmo. Quem começou? Não se sabe, mas a gente repete o gesto. E nega os fatos. Faz um acordo tácito de que está tudo bem e segue nessa esquizofrenia. Até um fato se sobrepor a qualquer comportamento dissimulado: a derrota irreversível. E agora vem a chatice das explicações. Os motivos da derrota sempre estiveram ali, o chato na história é que só agora todo mundo se propõe a enxergá-los.
Mas não era nada disso que eu queria escrever aqui. Saco isso. A essa altura, já perdi metade dos leitores. Ninguém gosta de texto grande, Loraine, te orienta!

O que eu queria dizer aqui é que os jornais portugueses são muito divertidos!!! Por causa do feito do Felipão, naveguei pelo site de alguns deles e fiquei impressionada com a falta de empolgação. Aquilo são manchetes para time de Parreira, não de Felipão!!! Está tudo errado!

Um deles, o Diário de Notícias (www.dn.pt), de Lisboa, sequer tinha trocado a manchete depois do jogo. Mantinha a mesma da apresentação da partida. Ô, empolgação, hein?!
“Figo lidera estratégia e Scolari esconde Ronaldo”

Achei que o A Bola (www.abola.pt), até pelo nome, fosse mais audacioso, principalmente depois da capa da edição impressa, que dizia hoje “Vai um chá?”, em alusão ao hábito dos ingleses. Mas olha a manchete do jornal online:
“Portugal nas meias-finais”.
Meias-finais? Ó, céus.
O Correio da Manhã (www.correiomanha.pt), de Lisboa também, acho até que tentou. Mas ainda fica a impressão de que estão falando de qualquer Seleção menos da deles:
“Portugal vitorioso no mata-mata dos pênaltis”.

Meramente correto, não é? Cadê o entusiasmo com o gaúcho que enche de orgulho e de inveja qualquer brasileiro? (Menos os colorados, os corintianos e o Luxemburgo, claro).

Portugal vive uma esquizofrenia às avessas. Está tudo errado!!! Se o Brasil acreditava, porque, afinal, aprendemos a acreditar SEMPRE quando o assunto é futebol, os portugueses sim-ples-men-te-não-a-cre-di-tam, à revelia dos fatos. À revelia de Felipão.

Eles mereciam o Parreira. A apatia dele. Na boa. Mereciam porque não se importariam com ela, nem iam notar. Temo que os portugueses não saibam valorizar o momento Felipão. Desperdiçar vibrações... tsc, tsc, tsc, não sei não, isso não se faz*.


*Porque de apatia eu entendo, mas essa já é outra história e não tem nada a ver com esse post sobre futebol.

25 junho 2006

Verdades

Toda palavra não teria começado como metáfora? Se no princípio era o nada ou muito pouco, de que forma os falantes se referiam às coisas senão valendo-se da relação de semelhança entre elas? Por isso que eu acho que, se a metáfora é hoje uma figura acessória de estilo, no princípio foi a principal forma de compreensão das coisas – e um importante meio de comunicação entre as pessoas. Porque, diferentemente de outros recursos lingüísticos, a metáfora requer a comparação, a análise, até a definição do que é igual, do que se parece, estabelecendo outro significado. Então, o pensamento está muito presente. Eu diria mais: a sensação está muito presente. Quando não se tem a palavra exata para exprimir o que está ali, sentido ou notado, o que fazemos? O que fazemos diante da necessidade de verbalizar o que a mente construiu indiferente à falta de substantivos? Misturamos o pensamento sobre uma coisa já nominada com a sensação provocada pela coisa ainda não nominada. Dependemos, de certa forma, da emoção – ainda que numa medida controlada, sem transbordamentos, no ponto, certeira.
Por que estou viajando desse jeito? A culpa é dessa frase, que li há pouco, atribuída a Nietzsche:

“Todas as evidências da verdade nascem apenas dos nossos sentidos”.

E o tempo passou, temos tantas palavras, tantas, tantas, precisas, suficientes para o diálogo, que as metáforas ficaram restritas a casos especiais. Mas fica a impressão de que, se nos dispuséssemos a prestar mais atenção a nossos sentidos, se tivéssemos tempo para isso no dia-a-dia, recorreríamos às metáforas mais vezes, como deve ter sido no princípio do mundo das línguas. E mais rapidamente novas palavras se incorporariam aos diálogos – não eternamente como estilos, mas logo, logo como substantivos comuns. E mais verdades nasceriam. Quantas verdades ainda não conhecemos?

28 maio 2006

Para Gláucia (as esquisitices)

Para voltar a escrever, para (re) começar de algum jeito, para fazer rir, para um dia eu ler e me arrepender (e, em seguida, dar de ombros), para os bem-humorados, que sempre me acordam a tempo de evitar a queda naquele precipício no pesadelo que é a cara emburrada, para os amigos que fiz ou tornei mais próximos com esse blog, como a Gláucia, do doce e sensível A Margarida Inventada. Gláucia, aliás, que me desafiou nessa brincadeira lááááá atrás. Não sei por que só agora concluo a brincadeira. Não entendo o tempo das coisas... Mas ele existe. Bom, à brincadeira: listar cinco coisas que faço/me são próprias e passíveis de serem consideradas estranhas. Sem pensar muito, juro, lá vai (a ordem não é qualitativa):

- na entrada da minha casa, há duas portas, uma de ferro, em (digamos) primeiro plano, e uma de madeira, a porta propriamente dita. Sempre abro esta primeiro, atravessando o braço entre as grades da anterior. E, quando já entrei, fecho a das grades sem trazer a chave para a parte de dentro da fechadura – de novo cruzando o braço entre os ferros e travando a porta das grades por fora.
- eu tenho medo do Linha Direta, o programa da Globo.
- no segmento, digamos, gastronômico, várias esquisitices, mas vou ficar só com essa: troco qualquer jantar por um punhado de uva-passa, amêndoas, cajus, castanha, pistache, aqueles mix, sabe? Troco. Mas no jantar; no almoço, não.
- Falando em trocar... trocar o quatro pelo sete e vice-versa é esquisitice? Pode estar certo: diz quatro, eu escrevo sete. Penso sete, escrevo quatro. Juro. Sou caso de estudo neurolingüístico (neuroaritmético?).
- sou provavelmente a única mulher no mundo que não tem pente ou escova. Não uso. Nunca penteio meus cabelos. Nem depois da piscina. Porque são lisos, muito finos. Morram de inveja, meninas. (Será que o santo dos cabelos sem frizz vai me castigar pela exibição? Esse receio tem a ver com a esquisitice seguinte:)
- acredito piamente que sempre que dizemos algo como uma certeza, sempre que dizemos algo como definitivo e fatal, Alguém lá em cima (sim, Alguém com letra maiúscula) faz tsc tsc tsc e sacode a cabeça, reprovando. Isso significa, aqui embaixo, que nos próximos instantes a tal certeza anunciada com empáfia vai implodir, com direito a contagem regressiva e tudo mais: 5, 4, 3, 2, 1.... (ou seja: estou considerando a possibilidade de acordar com cachos super “frizz” amanhã).
- eram cinco esquisitices. Já foram seis. Chega.

30 abril 2006

Superpoderes

Fiquei sabendo que até 1935 o dia das mães não era oficial no Brasil. Meus pais nasceram em 39. E nasceram no interior, não, na periferia de Guaíba, ou seja, um tanto longe do Brasil dos trópicos, aquele que conseguia acompanhar e reagir razoavelmente aos acontecimentos do mundo. E já que a instituição de uma data como essa não é lá um grande acontecimento é de se imaginar quão mais tarde Guaíba descobriu o dia das mães.

Mas, ainda que a data tivesse chegado aqui instantaneamente, meus pais não foram os primeiros filhos das minhas avós. Isso quer dizer que tios meus tiveram de aprender a dar presentes no dia das mães para a mãe deles – minhas avós. E a vida destas um belo dia foi interrompida com a novidade, com a surpresa da homenagem (ok, não tão surpresa assim). Enfim, foram alçadas à condição de seres oficialmente especiais quase que de um domingo para outro. Estranho. Estranho me dar conta de que algo perfeitamente encaixado no calendário e na expectativa de famílias foi apenas uma invenção à qual as pessoas tiveram de se adaptar.

Tudo bem que isso vale para o controle remoto, para o CD, para o celular. Minha sobrinha de 15 anos, por exemplo, surpreendeu-se ao saber que as pessoas tiveram de se adaptar (com extrema facilidade, é verdade) ao controle remoto. Acha que as TVs sempre vieram com ele. Mas a estranheza que ela sentiu ao saber que não vieram é um pouco diferente da minha agora, eu acho. Uma coisa é você estranhar a ausência do controle remoto no mundo, outra é você se desconfortar ao perceber que até 1935 não se esperava os segundos domingos de maio para dizer o que se sentia pelas mães. Ainda que pareça ingênuo eu sugerir que, hoje, ninguém usa outro mês ou domingo para isso, não trapaceie: instituir um dia, que traz um clima, uma trégua, um cessar-fogo, uma pré-disposição para o momento “família-feliz”, ajuda bastante.

O problema é quando a instituição é um fim em si mesma. É quando não há algo a ser dito apesar da oportunidade. Quando não há nenhum sentimento represado à espera da chance de dar aquele abraço na manhã de domingo, depois de escovar os dentes e limpar o rosto – minha mãe sempre fez questão –, mas ainda de pijama. Então, é estranho como algo tão enraizado entre a gente seja sentido, paradoxalmente, de um modo tão distante. De um modo estranho, no sentido de externo mesmo, que não reconhecemos. Uma inversão total, porque o dia das mães foi inventado como uma homenagem, genuinamente emocionada. Foi coisa de uma americana que havia perdido a mãe e tal.

Perdido a mãe. É isso!

Nesse dia das mães, e a partir dele, o mais generoso e sublime presente que eu poderia dar à minha - sempre que olhar para ela, sempre que estiver com ela - seria conseguir perceber apenas suas qualidades. Eu queria ser dotada repentinamente de uma capacidade de percepção tão distorcida que não reconhecesse as sombras de seu temperamento. Apenas a mãe iluminada. Apenas a mãe que vi nas noites enfermas da infância, a mãe dos lanches no fim de tarde na praia para a mesa cheia de amigos da adolescência, a mãe dos bilhetinhos de incentivo nas cinco manhãs de provas do vestibular, a mãe que passa a mão no meu rosto repetidamente, ansiada por não conseguir dar conta de minhas tantas lágrimas por tantos motivos, a mãe que liga para perguntar da gripe que eu nem lembrava mais que tinha, a mãe que a cada escova que faço segura meus cabelos no alto da cabeça para sugerir um penteado parecido ao que ela usava quando tinha a minha idade, a mãe do brilho no olho quando um conhecido diz que sua filha é parecida com ela.
Eu juro que queria isso: uma visão tão positivamente seletiva e condescendente como só consegue ser a lembrança saudosa que nos enruga o peito quando pensamos naqueles que já se foram e continuamos a amar.

O ideal seria aceitá-la inteiramente como ela é, eu sei.

Quem sabe no segundo domingo de maio de 2007?

Frisos

Sim, eu vou pular a minha, para não misturar razão e emoção – não que tenha conseguido impedir a mistura no que vem a seguir, mas acho que no primeiro caso não conseguiria nem disfarçar.
Pulo a minha para falar da geração de meus pais e da de quem tem até 20 anos hoje.
Tem várias coisas que eu não entendo na juventude dos anos 60 e 70. Frisar as calças, por exemplo. Minha mãe se gabava que meu pai passava (a ferro) frisos de calça como ninguém, e eu nunca entendi como isso pode ser propagandeável ou galanteador (principalmente na hora de usar as tais calças). Mas eu entendo que a geração deles seja fumante, por exemplo.
Agora, o que eu não consigo engolir é alguém fumando com 20 anos hoje. Não entendo como alguém que nasceu em 1985/86, que começou a entender o mundo em 95/96, que pôde a partir do ano 2000 (porque já adolescente) dispor de liberdade e conhecer qualquer informação (pensa na extraordinária revolução de métodos que os colégios sofreram, pensa no imensurável efeito da conexão em tempo real da Web), como alguém, diante de tantas possibilidades, escolhe fumar?
Ok, há muitas variáveis aqui, e eu estou reduzindo a uma opção o que pode ser um vício, um gosto. Afinal, se conseguíssemos gostar e fazer só o que é saudável, nossos problemas tinham acabado – tipo, passa a régua, manda fechar esse mundo e fazer outro rapidinho porque virou paraíso de novo.
Mas a minha implicância não é só moral. É espacial, quase estética. Não combina. Cigarro destoa de todo o resto do universo jovem atual. É quase como fazer o menino ir para o colégio com friso nas calças.

Agarradinho

Sempre que ele andava por perto eu sabia. Pelo perfume. Mesmo que não cruzasse com ele, o rastro de cheiro indicava sua passagem recente. Um perfume daqueles com popa e proa, porque algumas vezes o aroma embicava primeiro que ele. Mas esses dias algo em sua orelha direita distraiu meu olfato. Sequer lembro se seu perfume nessa vez antecipou sua presença ou foi o rastro dela. Aquilo na orelha, o que é?, pensei. De longe, eu não conseguia identificar, mas já conseguia estranhar.
Um telefone! Mais de perto, pude perceber.
Cumprimentei-o distraída por força da surpresa. Sim, eu já tinha visto um celular daqueles, dos bem modernos, que se fixa à voltinha da orelha como um urso agarradinho hi-tech. Só que vi na revista. E li como eu acho que um jovem lê uma matéria sobre geriatria, ou seja, não imaginei que se materializaria na minha frente pouco tempo depois.
Olha, não tenho nada contra penduricalhos em orelha ou novidades tecnológicas. Mas uma coisa é enfiar os fones de um tocador de música, por exemplo, e sair caminhando por aí balbuciando letras ou com um sorriso desenhado no rosto por causa da melodia. Agora, um celular? Quem precisa ter um telefone acoplado na orelha e andar por aí com a testa franzida, como que resolvendo um problema de segurança nacional estilo Jack Bauer? Quem? Que diabos tem de tão importante para ouvir e saber?
Haja paciência.
Naquele dia acho até que podia estar mal-humorada, mas tive certeza de que, se estamos mesmo nesse caminho, vou puxar a cordinha, me dá o ladinho porque eu quero descer já.

26 abril 2006

O peso das palavras

Eu odeio quando o jornalismo caga regras. Odeio. (Odeio e caga, duas palavras que eu não queria usar, porque são pesadas, e eu respeito o peso das palavras, principalmente das escritas.) De novo: odeio. Sabe o jornalismo do “como”? Como fazer isso, como não fazer isso, como melhorar aquilo, como, como, como... Saco. É pretensioso, é falso, porque o jornalismo retrata a vida real. E a vida das pessoas, ao menos as mais interessantes, não consegue seguir todas as regras. Até porque, se tu segue todas as regras, tu não questiona nada. E, se tu não questiona nada, nada muda. É preciso muito comprometimento para cagar regras. Parêntese: sabe a história da mãe que foi pedir a um sábio/monge/curandeiro, sei lá, que pedisse para o filho dela parar de comer doces porque estava fazendo mal e tal? Eram só algumas palavras, mas o monge mandou ela vir um tempo depois. Aí, quando ela veio, ele fez o que ela pediu, disse para o guri parar de comer doces. Então, ela quis saber por que o veinho (eu acho que era um idoso, para combinar com “sabedoria”) não tinha feito isso na primeira vez, já que ia só falar. O sábio/monge/curandeiro explicou o básico: como ele podia aconselhar o guri a parar com os doces se ele mesmo comia doces? Então, primeiro se livrou ele do hábito para então cagar as regras pro guri. Nesse caso, e só nesse caso, as palavras (ainda que regras) têm força.
É por isso que eu odeio quando o jornalismo caga regras. E é por isso que eu meio que não gosto do meu post anterior. Eu não quero explicar nada nessa vida – e, ali, parece que estou tentando explicar. Não estou certa do que escrevi, cadê a força das minhas palavras?

Eu acho que o jornalismo tinha de se limitar a fazer o que lhe é genuíno, o que foi a sua origem e a sua consagração, o que lhe faz sedutor e imprescindível: contar histórias. Tão apenas contar histórias. E não é pouca coisa: é a função monumental de contar a nossa história, sem regras, sem “comos”, prestando um serviço à História (agora, com letra maiúscula). Para a História-mãe, vamos parecer uma geração de leitores débeis, que precisava de “comos” diários para tudo.

As Bonecas Russas

Tem uma poesia do Affonso Romano de Sant’Ana que relaciona a infinidade de palavras que temos à disposição com as pessoas pelas quais passamos nessa vida – e podia-se dizer aqui o contrário: as palavras pelas quais passamos e as pessoas que temos à disposição. Meio lamentoso no início do texto, ele não entende como nos contentamos com a sonoridade das primeiras e o colorido das vestes das segundas, sem pararmos para conhecer quem são todas estas e o que querem realmente dizer todas aquelas. Com uma pitada de angústia, mas conformado e, sobretudo, maduro, termina o poema dizendo algo como isso: “não é possível esgotar o dicionário nem amar completamente tudo o que encontramos”.
E eu lembrei dessa parte depois de ver no cinema As Bonecas Russas, continuação de um filme que está ali no meu profile como um dos preferidos: O Albergue Espanhol.
Tem gente que está dizendo que o Bonecas é ruim. Ou, um pouco diferente: que o Albergue é melhor. E é, mas o que é desagradável no Bonecas o torna tão bom como o seu antecessor. Tudo bem que parece meio lento, acho que tem a ver com o fato de que o Albergue contava a história de várias pessoas, e essa continuação se concentra mesmo no personagem principal. Mas até isso – mais espaço para o personagem principal - faz sentido. Tem uma hora na vida que não conseguimos dar conta do tamanho que tomamos, e é preciso abrir mão de algumas dessas várias coisas sob pena de não aproveitarmos bem nenhuma delas. Vou explicar.
O espectador que compara o Bonecas com o Albergue está, na verdade, comparando o que realmente somos com o que imaginamos para ser. O Bonecas é o Albergue que se confronta com a hora h, com o primeiro dia do resto de nossas vidas, que se confronta com as escolhas. Ou seja: tem de cruzar a linha para o lado de lá e se comprometer com algo. Dá para chamar de amadurecimento também. Aí, não tem comparação mesmo com o Albergue Espanhol, que mostra o inverso disso: todas as nossas possibilidades. O saboroso do Albergue é que ele legitima nossa ânsia por liberdade, a gente compartilha com o personagem a deliciosa descoberta de que podemos deixar para trás o que não nos diz respeito a fim de procurar aquilo que faz sentido unicamente a nós mesmos. Somos os heróis numa jornada.
O indigesto no Bonecas é que essa liberdade presta contas: “e aí, o que vai querer depois de experimentar tanta coisa diferente ou ao menos tomar conhecimento, pelos amigos que seja, de que elas existem? Ou vai ficar esperando a próxima boneca que vem, exatamente como no brinquedinho russo?”. No Bonecas, chegamos lá: de herói a rei de nossa jornada, e a maioria pode pensar, como agravante, “era só isso mesmo?”. O Bonecas é assumir o que nos tornamos, é parar de ensaiar, é a angústia das definições, do ter de abrir mão de algo, do apostar sem certezas, tudo bem embaladinho pela urgência do tempo. E, se o espectador com seus lá 30 anos sai meio assim/assim do cinema, achando que não gostou, está provando que o filme é tão bom como o Albergue. Não era para gostar, era para se incomodar mesmo – até porque o poeta está aí para nos passar a mão na cabeça, paternal: “não é possível esgotar o dicionário nem amar completamente tudo o que encontramos”.

Importante: As Bonecas Russas não é nada melodramático como sugere esse meu texto (eu que exagerei, me perdoem!). Pelo contrário: tem bom humor tanto quanto O Albergue Espanhol. Aliás, rir da história (leia-se: da gente mesmo) talvez seja uma boa prova de maturidade sem ranço, aquela que não impede a gente de mudar de idéia apesar de todas as escolhas feitas e anunciadas.
O filme, e muito menos o texto, não é sobre permanências ou comprometimentos do tipo “até que a morte nos separe”. É sobre avançar casinhas, pular de nível, se dar uma promoção na carreira da vida... (cruzes, que brega...). Como é que faz isso na vida real? Sei eu. Até porque, se fosse fácil saber, não teria virado filme.

15 abril 2006

Guisadinho

Todos os dias passa um. E talvez seja o mesmo. Até porque, tão à margem, poucos (para não dizer ninguém) interessam-se por sua cara ou identidade. Sempre à noite, ou madrugada alta, e o silêncio dessas horas parece dar um tom solene, dramático à cena.
Já acordei por volta das 4h com o barulho feito por eles.
Ou ele. Vem nas segundas, quartas e sextas porque é dia do lixo orgânico. E nas terças e quintas também, vezes do lixo seco. Não é gari por profissão, mas vive do que eu e você julgamos não valer mais nada. Está fazendo “compras”. Ouço as rodinhas trepidarem o carrinho de supermercado na calçada – adotou o veículo por praticidade, claro, mas é inevitável a absurda analogia: se a minha rua – e provavelmente muitas outras – é o corredor, o detalhe mais chocante é que as prateleiras desse “súper” são as lixeiras de prédios e casas.
Sim, eu me viro para o lado e consigo voltar a dormir. Vai ver acho normal, né?

***
Lembrei de outra coisa, que me deixou pequenininha.
Eu não faço rancho de supermercado. Principalmente, porque não cozinho. Às vezes, cozinho, mas tem de ser por diversão. Então, não adianta procurar na minha casa arroz, feijão, carnes congeladas, “mantimentos”, como diria a minha mãe. Sim, a minha geladeira tem crises existenciais sobre qual sua função no mundo.
Ainda assim, eu vou várias vezes ao super comprar – além de frutas, leite, erva-mate e “a-coisa-q-estou-com-vontade-de-comer-aquela-hora” – bobagens. Esses tempos, lá estava eu, na beirinha do caixa, com um pote de uva-passa branca. Bem faceira. Eu adoro uva-passa, principalmente branca. Sim, estava só com o pote. Ah, e talvez carregasse comigo também uma garrafa de água. Mas só o pote era quase R$ 4. Juro. Uva-passa não é um troço barato. Na minha frente, uma senhora. Estatura média, mas forte, rosto castigado por traços que não me pareciam de velhice e um semblante frágil. Frágil não, sem vitalidade. Gola um tanto puída da camisetona que ajustava-se até as ancas e depois pendia como uma pequena saia sobre a calça um tanto curta, deixando à mostra os chinelos com pés de unhas mal-pintadas. O cabelo estava mais pra domado do que pra preso.
Dinheiro apertado na mão, ela passou arroz, leite, um ou dois tomates, uma cebola, mas o guisadinho ficou descongelando na sua mão. Não ia dar. Faltaria R$ 0,50 ou menos. A palma quase encobrindo toda a embalagem, ela olhou para a carne, olhou para a tela que exibia o valor total já alcançado com as compras e então desistiu. Empurrou o pacotinho para longe. Ia deixá-lo.
Céus.
Dei o dinheiro a ela. Ficou surpresa, mas aceitou. Acho que balbuciou um obrigada, sem me olhar nos olhos – atitude que me pareceu vergonha. E foi embora com “todas” as suas compras.
Eu não sei se ela era realmente pobre ou se apenas tinha calculado mal quanto gastaria naquela manhã. Não sei se ela ou uma criança estava passando fome aquele dia, se justamente aquele era o dia mais esperado da semana, porque iam comer carne depois de muito tempo, ou se o guisadinho era pro cachorro de uma madame. Eu não sei se ela podia estar nas ruas, de madrugada, com carrinhos de supermercado, como aquele que me acorda às 4h.
Só sei que, até adormecer aquele dia, fiquei pensando na minha frescura de uva-passa, custando quase o dobro do preço daquelas gramas de guisadinho.

02 abril 2006

Ler é uma bagunça

Os livros que li dariam um livro. Bem grosso, se eu pudesse juntar aí também o lido em artigos de revistas e de jornais. Explico. É que não resisto a sublinhar frases, trechos. Duas vezes já tive de comprar livros que me foram apenas emprestados porque não consegui não me apropriar deles com rabiscos e observações em margens e entrelinhas.
E tem o outro lado também. Dependendo de quem pede, fica difícil emprestar os meus livros, porque acabam tão pessoais, tão reveladores, quase diários, que exibi-los exige uma certa coragem, um certo desprendimento. Algumas revistas também. É como se eu tivesse levado para sempre o enunciado daquele tema de aula e de casa dos tempos de colégio: ‘sublinhe a oração verdadeira e comente as falsas’.
Eu traço links por aí. Depois de lidos, artigos de livros e revistas se transformam em hipertextos em uma web íntima. Navego por várias loraines, ou por diferentes épocas de uma mesma loraine, ao voltar aos livros depois de um tempo. Há vários textos atrás daqueles impressos. Então, se eu juntasse tudo o que já sublinhei nessa vida de leitora média, teria um livro. De auto-ajuda*, literalmente.


* Na boa, qual livro não é de auto-ajuda? Que livro não te ajuda? Eles sempre ajudam, mesmo os didáticos, de colégio, que sutilmente nos ensinaram a procurar por aí as orações verdadeiras e comentar as falsas. Atendendo ao convite quase sem se dar conta, chegamos a outros livros, que nos ensinaram a duvidar das frases verdadeiras e dar um crédito àquelas que parecem falsas. Com as certezas bagunçadas, pulamos pro próximo livro. E pro próximo... E pro próximo... Fazendo de conta que a gente quer realmente arrumar a bagunça.

Simetrias

A Cláudia Laitano escreveu uma crônica com esse título aí, sábado, em Zero Hora. De uma forma bem mais elegante do que esta, que foi como a minha lembrança guardou a idéia, ela mencionou um fio – perceptível por nós, espectadores aprisionados às pequenezas do presente, somente em algumas iluminadas vezes – que perpassa o todo, ligando acontecimentos e épocas – ou os sentimentos sobre estas e aqueles. Aí, a partir do Simetrias da Cláudia, meu pensamento (simetricamente) encontrou de novo uma coisa que há tempos eu queria escrever aqui e sempre adiava.
É que, mesmo sem conseguir explicar direito, eu acredito numa simetria suprema. Eu acho que existem três ou quatro sentimentos, três ou quatro leis, três ou quatro mandamentos, três ou quatro motivações – eu não sei que nome dar a eles, se sentimentos, leis, mandamentos ou motivações -, enfim, três ou quatro “algos” básicos, a origem do todo, e que apenas se repetem nas inúmeras esferas da vida, da natureza e do mundo, maculados pelas circunstâncias e por isso recebendo outros nomes. Então, no fundo são aqueles três ou quatro algos iniciais, repetidos indefinidamente, com alguma roupagem superficial porque influenciados pelo seu tempo e espaço – sempre relativos, o Einsten já garantiu.
Essa sensação tem a ver com a minha teoria do arco dos antônimos complementares, que eu criei numa mesa de bar e nunca mais consegui explicar direito a ninguém (nem com o desenho no guardanapo). Vou tentar: imagine-se em uma das pontas de um arco bem arredondado, tomado por um sentimento de ódio, por exemplo. Na outra ponta do arco, está o antônimo desse sentimento, o amor. Aí, você começa a se afastar da ponta do ódio, porque a vida precisa seguir e tal. Se afasta, se afasta, se afasta. Mas, como você caminha num arco, quanto mais você se afasta e se aproxima do amor, mais perto você está de novo do ódio, porque é um arco, lembra? Um círculo que, além de não ser perfeito, não se fecha. Eu descartei o círculo perfeito para essa teoria porque daria uma idéia de placidez, de fluidez, que eu acho incompatível com a forma como lidamos com esse afasta-e-aproxima de sentimentos/leis/mandamentos/motivações propulsores da vida – como o amor e o ódio. E também porque a gente precisa achar que está indo a algum lugar que não é o mesmo do ponto de partida. Um círculo poderia sugerir isso, e, ainda que a vida seja isso, é melhor parecer que não, para ficar atraente. A gente está sempre partindo e chegando aos mesmos pontos – ainda que com novas roupagens, graças à relatividade – e isso precisa ser uma descoberta, não algo previsto e sabido. Até dá para dizer que amor e ódio são o mesmo sentimento, apenas com identidades diferentes num complô para acreditarmos que o mundo é diverso.
Ok, eu sei que este post está difícil... Ele bem que poderia fazer parte da série “Não estou nada bem”. Talvez eu esteja falando não de uma, mas de duas coisas, ou de várias, querendo explicar (pretensiosamente) o mundo numa única teoria... É isso mesmo! :)
Segue-se outro exemplo, então, desse mundo absolutamente simétrico, só a gente não vê.
No Globo Repórter especial sobre a viagem ao espaço do brasileiro Marcos Pontes, a reportagem entrevistou um astronauta que foi quem mais horas já ficou fora de naves, entre as estrelas, com a escuridão do infinito na frente, dos lados e às costas. Sabe o que ele sentiu?
- Paz, uma sensação completa de paz – ele contou.
E aí eu lembrei que essa é rigorosamente a mesma sensação sabe de quem? De quem mergulha. No fundo do oceano ou no infinito do espaço (e podia-se dizer “no infinito do oceano ou no fundo do espaço”), sentimos a mesma a coisa.
Te convenci?

01 abril 2006

Linha de produção

Vai abrir um salão de beleza na Nilópolis – a rua ou a avenida, tanto faz, que para mim será sempre “aquela que vira Nilo (Peçanha)”. Mais adiante, se amontoam pelos menos outros dois, um destes bem evidente, na esquina da Vicente (da Fontoura) com aquele trechinho de rua que alcança a Protásio (Alves) chamado de Neusa Brizola – outra daquelas ruas que vão ser sempre lembradas por qualquer coisa menos pelo nome que lhe deram. A Neusa era um beco, foi aberta à força. Antes, quem vinha da Nilo tinha de circundar uma quadra para chegar até a Protásio. Um parêntese antes de prosseguir. Tem um pessoal ali na Neusa, uma família, acredito, que fica todos os dias e o dia todo sentada em cadeiras de palha na calçada. Os integrantes da tal família se revezam, na verdade, porque é preciso manter algumas cadeiras vazias – pelo bom andamento do serviço, que é esse: “Empalha-se cadeiras”. Eles ficam ali tão à vontade, que me faz pensar: você tira a pessoa do beco, mas não tira o beco de dentro da pessoa, sabe?
Mas, enfim, voltando: eu contava que vai abrir um salão de beleza. Vi a faixa esses dias. Suspirei quase sem sentir. Uns dias depois, diante de outra faixa, estendida em prédio na altura da Venâncio (Aires) em que desemboca a Travessa da Paz, lembrei do salão, o suspiro voltou, ganhou forma e eu o entendi.
Dizia a faixa da Venâncio: “Breve aqui imobiliária”. Mais uma imobiliária. Mais um salão de beleza. Quem precisa de mais um salão e de mais uma imobiliária? Senti um cansaço de vida... Não que eu esteja amaldiçoando o negócio dessa gente empreendedora – até porque não entendo nada de microempresa ou administração. Pelo contrário: é a crença na boa intenção e na força com que essa gente se jogará na empreitada que faz pesar meu desânimo diante das faixas. Cansaço, pessimismo meu de ver tanta energia direcionada para fazer sempre o mesmo, para chegar aonde alguém (no caso do salão e da imobiliária, muitos alguéns) já chegou.
Por que, podendo escolher tantos caminhos, a gente prefere o já percorrido? Por que, podendo ser o primeiro num novo guichê, a gente escolhe entrar na fila? Por que, podendo inventar moda e modos, a gente escolhe a linha de produção*?
Sim, eu sei a resposta: porque é mais fácil. Não tenho propriedade para te (me) convencer do contrário. Minha vida está mais para linha de produção mesmo, apesar da moda e dos modos que, ainda que não inventados, estão sendo sonhados.

*Da série “asterisco metido a besta”
Associação possível com a família do beco: (com tanta liberdade) a modernidade tirou a gente da linha de produção, mas não tirou a linha de produção de dentro da gente.

Seguinte, ó

"... a vida concreta sempre tem o direito de condenar as idéias, enquanto as idéias podem criticar e querer mudar a vida concreta, mas não têm o direito de condená-la."

É do Contardo Calligaris essa frase. E em breve eu prometo dar prosseguimento a esse post, para que faça sentido.

20 março 2006

Angústia (ânsia de rir)

Tenho um desafio pessoal: não me levar a sério. Esse blog é parte desse plano algo iconoclasta. É por isso que ponho aqui o que invento, para tirar do pensamento a solenidade pesada que parece vir de fábrica. Às vezes, demora um pouco para eu conseguir rir de mim. E tenho respeitado esse tempo.
O texto a seguir, por exemplo, não é de hoje ou do fim de semana passado. Recente é a frouxidão de seu ar solene. Embora reconheça e respeite os sentimentos que o provocaram, agora posso rir dele e de sua provável breguice. Posso mais: posso submetê-lo ao seu riso, leitor. E é assim que ele e os sentimentos que o provocaram ficam ainda mais legítimos.
Ainda assim, ainda que tente convencê-lo, leitor, de uma força que nem eu acredito existir neste texto, a razão de ele estar aqui é bem outra: eu precisava voltar ao blog. Precisava. De qlq jeito. Porque se ele é parte de um plano algo iconoclasta e já fazia tempos que não escrevia aqui, é possível imaginar o quanto tenho me levado a sério. Chega. Ao texto (risível, por favor; comentários debochados, plis):


¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Pode ser por causa do sol que não veio e dos pingos de chuva que não secam no vidro da janela.
Pode ser por causa do dia que insiste nos ingredientes de inverno apesar de ser um domingo de verão.
Pode ser porque é, enfim, domingo.
Pode ser porque não dormi muito bem e não tomei café da manhã.
Pode ser porque o restaurante do almoço mudou de endereço, e uma fila enorme me separou da segunda opção.
Pode ser porque de nada adiantou sair corajosa, indiferente à chuva, pois ruas e avenidas estavam vazias e eu voltei sem o que o silêncio da minha casa mandou buscar.
Pode ser porque nenhum amigo ligou. Nem um irmão. Nem a mãe.
Nem a mãe.
Pode ser porque, quando tentei eu ligar, o primeiro telefone deu ocupado.
Pode ser porque as horas não passam, e o pensamento parece exausto de ir e voltar pelo mesmo caminho.
Ok, pode ser por tudo isso. Às vezes os dias avançam e encontram a noite assim mesmo: meio que desajeitados, apesar de toda a vontade de acertar.
Mas a questão é que há outras possibilidades.
Pode ser porque ele ficou quieto e eu falei demais, porque ele esperou eu falar justamente quando resolvi calar. Então, pode ser pelo que dissemos e não dissemos um ao outro. E pode ser, principalmente, pelo que deixamos de fazer juntos ocupados que estávamos buscando palavras ou tentando acertar o momento ideal para aquele silêncio eloqüente.
Pode ser simplesmente porque tinha de ser assim – e quase consigo suspirar de alívio.
Quase:
- Por que, então, está tão difícil me comportar como quem realmente acredita que as coisas são como têm de ser?

28 fevereiro 2006

Do dia 25

Simpático. Meigo. Definitivamente, carinhoso. O que mais um presente poderia ser? Obrigada!

05 fevereiro 2006

Mau humor

Não acredito em protetor solar que não sai na água. Não acredito em cor certa na virada de ano. Não acredito em flanelinha, oficina literária ou drenagem linfática. Não acredito em amigo-secreto de firma, nem em feliz Natal de empresa de cartão de crédito. Não acredito em cartão de Natal, nem em próspero ano-novo. Nem em sorriso de caixa, proposta de cambista, abraço de ex. Não acredito em recaídas. Em falta de troco, sinal amarelo, jatinho particular, nem em bolo de noiva. Não acredito em loterias, em descontos de 50% nem em acréscimos do segundo tempo. Não acredito em parabéns a você, em enlatados ou embutidos, em churrasco requentado nem nos programas da National Geographic. Não acredito em viagra nem em hóstia. Nem em pão light ou curso intensivo. Não acredito em bis de laranja, em peça única, em corrimão. Não acredito em algodão doce. Nem em flúor ou xampu tonalizante. Não acredito em biografias sem cortes nem em purificador de ambientes.
***
O mau humor vira o mundo de costas. Teme o olho no olho. Junta pó, derruba o porta-retrato, bate a porta. E faz queimar a comida, a chave não girar, faltar gás. Faz a gente perder o ônibus, andar de bragueta aberta, e o pneu furar. Faz pisar no chiclé e derrubar o café. O mau humor estraga a chapinha e, abafado e úmido, tenta espantar a chuva de verão.
O mau humor, que coisa, é um desconfortado, um insatisfeito, um aborrecido com a sua sina, a de no fundo fazer rir.

PS.: seguido eu via esse tipo de texto metidinho, de autoras descoladas (ou seria texto descolado de autoras metidinhas?) cadenciando coisas de categorias dissonantes, listadas na horizontal, uma atrás da outra, para representar uma sensação. Técnica (que nome dar a isso?): põe a sensação no título, nova linha, e sai a citar coisas, sem se preocupar com a relação que possam ter. Quanto mais prosaicas, maior o efeito, me parece. Nunca tinha tentado um parecido. Taí. É um estilo meio blasé, né? Talvez disfarçando uma incapacidade de fazer de outro jeito, aquele que descreve suave, amarrando palavras e talento, o que quer dizer. Mas isso pode ser apenas uma suspeita mal humorada.
A parte final (depois dos ***) destoa um pouco. É que eu não queria parecer estar de mau humor. Porque não estou, ora.

31 janeiro 2006

Rótulos, embalagens e etiquetas

Pensa num supermercado. Imagine-se num corredor de coisas miúdas, ensacadas, enlatadas. Diversas cores, milhares de letrinhas naqueles produtos todos. Informação, informação, informação. Se você respeitar ao pé da letra os profissionais que ganham a vida assim, desenhando e elaborando textos para rótulos, embalagens e etiquetas, e ler tudo, vai vencer um único corredor a cada ida às compras. Dois, talvez, se você estiver com tempo. E a leitura, digo, as compras continuam na próxima vez. Não impressiona você pensar que cada letra, cada imagem, cada cor naquele produto foi planejada? Demoradamente planejada, na certa. Imagina a reunião para decidir a embalagem do grão-de-bico.
Há um mundo naquelas letras miúdas de rótulos, embalagens e etiquetas. O idioma é o português, na maior parte delas, mas seguido encontramos o quimiquês de “antes”, “atos” e “ódicos” que sequer vimos no colégio, imagina lembrar o que significa. Não era assim antes, ou nunca parou nas suas mãos uma revista velha, com toscos reclames (anúncios) de 30, 40 anos atrás? As embalagens eram apenas... embalagens. Vinham o nome do negócio, uma frasezinha sugerindo do que se tratava e era isso. Cores básicas. Bicolor, no máximo. Hoje, não.
Hoje, rótulos, embalagens e etiquetas devem ser projetados por profissionais com MBA. Pensa no café da manhã, por exemplo. Não dá tempo de abrir o jornal se formos ler de cabo a rabo o que está escrito no saquinho do pão (light, com centeio, aveia, mel, gergelim, 0% de gordura, rico em fibras e enriquecido com ferro) e no potinho da margarina (sem sal, sem gordura, rica em polinsaturados, enriquecida com ômega sei lá qual número). Ok, mas eu leio. Confesso que gosto. É como se, ao mastigar e ingerir um produto tão especial, enquanto leio o quanto ele é especial, o efeito saudável duplicasse, triplicasse. E o café da manhã quase vira um ritual de cura.
Etiqueta de roupa, então. Nunca mais vi apenas o P, o M e o G. Um parêntese: acho o GG tão ofensivo... Deve ter sido uma das primeiras tentativas (no caso, um tanto grossa, insensível) de pensar as etiquetas como algo dinâmico, um meio de comunicação, tratando o cliente fora dos padrões. Fecha parêntese. O fato é que, hoje, há peças que chegam a ter três, quatro etiquetas presas à barra, uma por cima da outra, como uma colônia de carrapatos têxteis. E aí você chega em casa e precisa reservar um tempo para, antes de guardá-las no armário, sentar-se numa poltrona e ler as roupas. Dependendo do número de peças, as etiquetas vão se empilhando no braço da cadeira e, depois, quase enchem o lixinho seco sobre a pia da cozinha...
Esses dias, comprei um sutiã. Não dá nem para chamar de lingerie. Sutiã básico, simples. Mas eram três etiquetas, fora a do preço. Em uma delas dizia que não podia lavar nem secar na máquina. Não podia usar detergente, mas apenas sabão neutro. Não podia torcer, só apertar. E tinha de secar à sombra. Sim, usar podia – ao menos não encontrei nada dizendo o contrário e acho que li tudo. Cruzes, pensei, isso não é uma roupa, é quase um ser vivo. Acho que comprei um tamagochi.

Brincadeirinha sacana

Desde pequena, essa coisa de pensar me fazia pensar. Lembro que seguido me metia – por prazer – em um raciocínio tortuoso e sem fim, estúpido até, e certamente inútil. Eu voltava a ele, antes de dormir, por exemplo, como se fosse um passatempo, um jogo, um brinquedinho guardado no meu armarinho imaginário de criança quieta. Era assim, eu começava mentalmente:
- Estou pensando que estou pensando. Se estou pensando que estou pensando, então estou pensando que estou pensando que estou pensando. Mas, agora, estou pensando que estou pensando que estou pensando que estou pensando. Logo, estou pensando que estou pensando...
E não parava mais, um espiral cavando o infinito, já que para pensar que eu estava pensando eu tinha de pensar isso, e ficava voltando para trás (ou seria indo pra frente?), tentando chegar ao primeiro pensar (ou ao último). Quando ficava agoniante, eu parava. Ou achava que parava.
Não é por acaso, então, que escrever sobre pensar/pensamento tem sido recorrente aqui neste blog. Eu penso muito. Muito e desnecessariamente. Eu desperdiço pensamentos, porque eu me contento com a ginástica passiva do pensamento, e não miro o seu produto ativo, a ação resultado dele. Eu não aplico a maior parte até porque, quando percebo que me aproximo de alguma conclusão, vou perdendo o interesse. Gosto é do estúpido e inútil espiral da brincadeira de criança quieta. Só que tem hora que pensar atrapalha. Tem muitas horas, aliás – tornando a brincadeira meio séria, cara demais.
Mas como se economiza pensamento? Onde é o “off”? O pause ao menos? Se dormimos, temos a impressão de que não pensamos. Mas e quando pensar não deixa dormir? Porque basta você pensar (!) “Não vou mais pensar nisso” para o “nisso” não sair mais da sua cabeça*. O sono não tem vez com um pensamento treinado em academia como o meu. Pensamento marombado: só quer volume, só quer se admirar no espelho, nada de conteúdo efetivo.
Pior mesmo quando o pensamento não encontra palavras, está na sua fase pré-histórica, imponderável, uma sensação apenas. Bah, aí a insônia vai longe.
Mas, se eu não parar de pensar agora, esse texto não acaba.


*Do Arnaldo Antunes: “Pensamento vem de fora / e pensa que vem de dentro, / pensamento que expectora / o que no meu peito penso / Pensamento a mil por hora, / tormento a todo momento / Por que é que eu penso agora / sem o meu consentimento?”

Asterisco do asterisco: o * é o avô do link, e o hipertexto é neto da nota de rodapé, né?

Ia escrever, mas não consegui

Muitas vezes, não são as idéias que estão na minha cabeça, mas sim, já prontas e inteiras, as frases, os parágrafos completos, encadeados, com sentido. Aí, sem fazer barulho, sem desviar a atenção para nada, saio pé por pé, mas não adianta. Basta eu pegar a caneta ou buscar as letras no teclado, basta uma folha de papel ou a tela em branco do computador na minha frente para tudo desaparecer. Como se o vazio do suporte – papel ou tela – se olhasse num espelho.
Como se as frases antes ali fossem clandestinas, e a presença do papel e da tela, alguma forma de oficialidade repressora, de autoridade censurante. Como se as frases fossem algo selvagens, escondendo-se da civilização. E, aí, como o homem branco se aproximando de uma tribo acuada, minha consciência tenta convencer as frases a voltarem, a deixarem a sombra dos arbustos. Elas vêm, receosas, mas vêm. Cheias de pudor, mas vêm. Diferentes a ponto de comprometer a essência, mas vêm. Não têm a mesma vivacidade, espontaneidade da primeira vez em que as conheci, quando brincavam livres de mim.
E tenho de me contentar em pôr no papel ou na tela apenas o que foi possível, o que a oficialidade conseguiu. Fica a impressão de que traí minhas próprias idéias, ou que estou enganando o leitor. É muito grave não conseguirmos contar tudo? Para quem tenta, é. Mas que idéia é livre no papel? Que texto escrito não é uma escolha para a consciência e, então, uma forma de prisão para as idéias?

25 janeiro 2006

Da série "Não estou nada bem" (3)

Eu poderia usar a imagem de uma borboleta, e na certa alguém já tentou algo parecido. Uma borboleta sem paradeiro, mas voando leve, na procura tranqüila de qualquer coisa, pousando aqui e ali, cochichando traquinagens com folhas e flores, agradável como a anfitriã para seus convidados em uma elegante e perfumada festa que está começando.
O ato de pensar pode sim ser essa imagem.
Mas, em outras vezes, o pensamento é um inseto bem menos primaveril. Bem menos gentil e sociável que uma borboleta. Uma mosca, por exemplo, uma mosca-gigante _ daquelas que devem ser entre suas próprias iguais alguma aberração genética, um ET na Terra das moscas. Vem zumbindo de longe, decidida, como um agente em missão dentro de um jato. E o zumbido toma conta do ambiente enquanto ela dá rasantes, atordoando, fazendo todo o resto sumir de sua atenção. Apenas ela, ela, ela.
Às vezes, em vez de flanar sorridente e receptivo naquele salão de festas cheio de amigos, o pensamento vem solitário num corredor que você nem sabia que existia – escuro, cinza, úmido –, pisando firme, vem que vem, emburrado. E vem na sua direção, a marcha crescendo, crescendo, crescendo, e ele pára na sua frente, bem perto. E fica ali, ofegante, ocupando espaço, barrando seu caminho, exigindo um entendimento, uma solução, mas sem acrescentar rigorosamente nada para que isso ocorra. Só cara feia. Mesmo que você o encaçape, como é possível fazer com a mosca-gigante usando um copo com a boca virada para baixo, ele fica lá, como ela, se debatendo contra as paredes, ensandecido.

15 janeiro 2006

Infância (4)

Da sala, de dentro da minha casa, ouço a menina perguntar à mãe. As duas passam no meu trecho de calçada a tempo de a pergunta entrar inteira pela janela:
- Mãe, ainda estamos no horário de verão?
Aí, me lembrei de outra “preocupação” comum às crianças, quando estão começando a freqüentar a escolinha.
- Mãe, amanhã já é segunda-feira?
Senti inveja (saudade?) dessa alienação infantil. Desse pedaço de vida alheio à pressão do tempo, ou às informações que antecipam a passagem irreversível dele, produzindo uma dose de ansiedade que contribui para seu suposto peso. Inveja dessa condição infantil imune a prazos tão enganosamente inofensivos. Inveja principalmente, agora me dou conta, do luxo de viver sem precisar saber que horas são – se estão atrasadas ou adiantadas – e em que dia da semana estamos porque há alguém por perto, bem perto, para se preocupar com isso. E melhor, olha que delícia: alguém pronto para dar a resposta certa e que, porque tem preocupações mais sofisticadas, o faz com a leveza e a segurança de que a criança nem sabe que precisa.

Zanzando

Tem um caminho, um trecho de calçadas tão familiar, em que o ir é tão automático, que comecei a olhar mais vezes para o lado. E fui juntando uns detalhes. De quadra em quadra, percebê-los ajuda a passar o tempo até vencer todo o trecho.

1
Bem no início, tem um restaurante daqueles que escreve com giz, no cavalete negro, “hoje mocotó”. Daqueles em que o cara do caixa fica entrincheirado, como numa casa-mata, um amontoado de pacotes de salgadinhos, balas, chocolates, cigarros esquizofrenicamente organizados. Com sorte, você vê o rosto do cara, mas não sabe se ele está nu ou de saias. Mas o detalhe aqui está na mesa colocada à beira do piso lavado com vassoura, água e sabão a cada fim de almoço, quase se precipitando à calçada: sobre a toalha de plástico, uma folha de caderno colada num papelão, apoiado no porta-guardanapo de papel, identifica “reservado - chefia”.

2

Duas quadras depois, um prédio com jeito de abandonado é um açougue ativo. Paredes cinzas, chão coberto por um piso que me lembra o da casa da minha avó materna, daqueles com desenhos geométricos desbotados numa textura que não vê cera há tempos. Cor ali só o rubro sanguinolento das postas de carne penduradas nos ganchos dentro do balcão envidraçado e refrigerado – daqueles que pode ter sempre uma mosca pousada no cantinho interno, exibindo seu ventre para quem tenta escolher um pedaço de churrasco. O detalhe aqui? O açougueiro. Ele é discreto, quase nunca está por ali, surge de repente somente quando alguém aparece interessado em seu produto. Não está de avental. Mas de jaleco, num branco limpo impressionante. Cabelos grisalhos aparados, óculos, gestos medidos. Passaria tranqüilamente por médico, um dentista, eu acho.

3
Os próximos três estabelecimentos que me chamam a atenção estão na mesma quadra, um ao lado do outro, praticamente. Na ordem, primeiramente uma vitrine que desmente completamente a placa luminosa sobre a entrada. Expostos, produtos que vão de guarda-chuva e sobrinha a bonequinhas de plástico, passando por touca térmica e um kit chinelos-toalha-roupão. Um bazar? Nada. Uma lavanderia. Se espiar pra dentro, lá no fundo estão as máquinas. Ao lado do bazar, ops, da lavanderia está, claramente, uma padaria. O cheirinho irresistível a qualquer hora do dia não deixa dúvidas. E isso não é força de expressão: já passei por ali em horários bem diferentes, e os pãezinhos frescos estão por lá, atiçando olfato e fome. O nome da padaria? Cheiro de pão. Vizinha aos pães, uma sorveteria que parece esquecida ali pelos anos 50, a começar pelo nome – Delícia. O piso tem o brilho e a frieza dos azulejos que cobrem as paredes. Você parece estar entrando em um banheiro. O balcão, em azul, e as mesas, em cinza, são de fórmica. As cadeiras, cor de creme, são de plástico, naquele design em que assento e encosto são uma coisa só, num desenho arredondado, sugerindo que seu traseiro encaixa perfeitamente ali. A máquina registradora no caixa (que se destaca no balcão por ter uma proteção de vidro e uma plaquinha pendurada com correntinhas onde diz “Caixa”) é mesmo uma máquina registradora: cor de chumbo, enorme, robusta, em que o preço a ser pago é mostrado no cantinho superior, com números, em branco, num fundo negro, que giram unidade a unidade, sabe? Sempre que passo por ali, tenho a impressão de que o Nelson Rodrigues poderia ter escrito uma parte de Engraçadinha para aquele cenário.

4
A próxima parada é um minimercado. Caixas de madeira para as frutas, edições do jornal mais popular da cidade, cuca feita em casa, balcão dos picolés e a oferta do dia dividem a atenção dos passantes na porta do estabelecimento. Nada de extraordinário, né? Deu para imaginar de que tipo de armazém estou falando. Nada me faria citá-lo aqui, exceto por um detalhe. Pendendo do centro do batente da porta, preso a uma corrente que o deixa a meia altura do chão, cadeado ali, adivinha o que é? Um isqueiro. O dono do lugar deve ter cansado de, com tanta opção nas prateleiras, atender quem chega ali perguntando apenas “Tem fogo?”. O armazém fica em uma esquina, a uns passos de um viaduto, que também tem um detalhe. Não vale um texto só para ele, mas é bom dizer que se trata do vão debaixo de viaduto mais perfumado (ou fedorento) da cidade. É que um ambulante faz ponto ali todo dia. E ele vende incensos. Dezenas deles.

5
Estamos perto do destino e ao menos mais dois registros julgo valer a pena. Um deles é outro armazém, aos moldes do descrito anteriormente, exceto pelo fato de o dono preferir exibir flores e não comida. A atração ali é Blanc, um cachorro que carrega no pescoço uma plaquinha de metal com seu nome e origem. Vive solto por ali. Acompanha o movimento, indiferente aos “ó, que bonitinho” dos pedestres. Deitado na beira do piso com as patinhas dianteiras penduradas, apontando para a calçada, o semblante é de quem se sente dono daquele trecho da avenida. O armazém fica ao lado de uma pet shop, que provavelmente Blanc nunca freqüentou, nem precisa. Soberano a tudo é o que ele parece.
Por fim, vale contar ainda aqui da loja de produtos ortopédicos duas quadras adiante. Ou melhor, não vale. Ou você confiaria em uma loja dessas que exibe na porta um esqueleto vestido com um jaleco e um estetoscópio?

Bem juntinhas

Bem juntinhas
eu e a Búio