30 abril 2006

Superpoderes

Fiquei sabendo que até 1935 o dia das mães não era oficial no Brasil. Meus pais nasceram em 39. E nasceram no interior, não, na periferia de Guaíba, ou seja, um tanto longe do Brasil dos trópicos, aquele que conseguia acompanhar e reagir razoavelmente aos acontecimentos do mundo. E já que a instituição de uma data como essa não é lá um grande acontecimento é de se imaginar quão mais tarde Guaíba descobriu o dia das mães.

Mas, ainda que a data tivesse chegado aqui instantaneamente, meus pais não foram os primeiros filhos das minhas avós. Isso quer dizer que tios meus tiveram de aprender a dar presentes no dia das mães para a mãe deles – minhas avós. E a vida destas um belo dia foi interrompida com a novidade, com a surpresa da homenagem (ok, não tão surpresa assim). Enfim, foram alçadas à condição de seres oficialmente especiais quase que de um domingo para outro. Estranho. Estranho me dar conta de que algo perfeitamente encaixado no calendário e na expectativa de famílias foi apenas uma invenção à qual as pessoas tiveram de se adaptar.

Tudo bem que isso vale para o controle remoto, para o CD, para o celular. Minha sobrinha de 15 anos, por exemplo, surpreendeu-se ao saber que as pessoas tiveram de se adaptar (com extrema facilidade, é verdade) ao controle remoto. Acha que as TVs sempre vieram com ele. Mas a estranheza que ela sentiu ao saber que não vieram é um pouco diferente da minha agora, eu acho. Uma coisa é você estranhar a ausência do controle remoto no mundo, outra é você se desconfortar ao perceber que até 1935 não se esperava os segundos domingos de maio para dizer o que se sentia pelas mães. Ainda que pareça ingênuo eu sugerir que, hoje, ninguém usa outro mês ou domingo para isso, não trapaceie: instituir um dia, que traz um clima, uma trégua, um cessar-fogo, uma pré-disposição para o momento “família-feliz”, ajuda bastante.

O problema é quando a instituição é um fim em si mesma. É quando não há algo a ser dito apesar da oportunidade. Quando não há nenhum sentimento represado à espera da chance de dar aquele abraço na manhã de domingo, depois de escovar os dentes e limpar o rosto – minha mãe sempre fez questão –, mas ainda de pijama. Então, é estranho como algo tão enraizado entre a gente seja sentido, paradoxalmente, de um modo tão distante. De um modo estranho, no sentido de externo mesmo, que não reconhecemos. Uma inversão total, porque o dia das mães foi inventado como uma homenagem, genuinamente emocionada. Foi coisa de uma americana que havia perdido a mãe e tal.

Perdido a mãe. É isso!

Nesse dia das mães, e a partir dele, o mais generoso e sublime presente que eu poderia dar à minha - sempre que olhar para ela, sempre que estiver com ela - seria conseguir perceber apenas suas qualidades. Eu queria ser dotada repentinamente de uma capacidade de percepção tão distorcida que não reconhecesse as sombras de seu temperamento. Apenas a mãe iluminada. Apenas a mãe que vi nas noites enfermas da infância, a mãe dos lanches no fim de tarde na praia para a mesa cheia de amigos da adolescência, a mãe dos bilhetinhos de incentivo nas cinco manhãs de provas do vestibular, a mãe que passa a mão no meu rosto repetidamente, ansiada por não conseguir dar conta de minhas tantas lágrimas por tantos motivos, a mãe que liga para perguntar da gripe que eu nem lembrava mais que tinha, a mãe que a cada escova que faço segura meus cabelos no alto da cabeça para sugerir um penteado parecido ao que ela usava quando tinha a minha idade, a mãe do brilho no olho quando um conhecido diz que sua filha é parecida com ela.
Eu juro que queria isso: uma visão tão positivamente seletiva e condescendente como só consegue ser a lembrança saudosa que nos enruga o peito quando pensamos naqueles que já se foram e continuamos a amar.

O ideal seria aceitá-la inteiramente como ela é, eu sei.

Quem sabe no segundo domingo de maio de 2007?

Frisos

Sim, eu vou pular a minha, para não misturar razão e emoção – não que tenha conseguido impedir a mistura no que vem a seguir, mas acho que no primeiro caso não conseguiria nem disfarçar.
Pulo a minha para falar da geração de meus pais e da de quem tem até 20 anos hoje.
Tem várias coisas que eu não entendo na juventude dos anos 60 e 70. Frisar as calças, por exemplo. Minha mãe se gabava que meu pai passava (a ferro) frisos de calça como ninguém, e eu nunca entendi como isso pode ser propagandeável ou galanteador (principalmente na hora de usar as tais calças). Mas eu entendo que a geração deles seja fumante, por exemplo.
Agora, o que eu não consigo engolir é alguém fumando com 20 anos hoje. Não entendo como alguém que nasceu em 1985/86, que começou a entender o mundo em 95/96, que pôde a partir do ano 2000 (porque já adolescente) dispor de liberdade e conhecer qualquer informação (pensa na extraordinária revolução de métodos que os colégios sofreram, pensa no imensurável efeito da conexão em tempo real da Web), como alguém, diante de tantas possibilidades, escolhe fumar?
Ok, há muitas variáveis aqui, e eu estou reduzindo a uma opção o que pode ser um vício, um gosto. Afinal, se conseguíssemos gostar e fazer só o que é saudável, nossos problemas tinham acabado – tipo, passa a régua, manda fechar esse mundo e fazer outro rapidinho porque virou paraíso de novo.
Mas a minha implicância não é só moral. É espacial, quase estética. Não combina. Cigarro destoa de todo o resto do universo jovem atual. É quase como fazer o menino ir para o colégio com friso nas calças.

Agarradinho

Sempre que ele andava por perto eu sabia. Pelo perfume. Mesmo que não cruzasse com ele, o rastro de cheiro indicava sua passagem recente. Um perfume daqueles com popa e proa, porque algumas vezes o aroma embicava primeiro que ele. Mas esses dias algo em sua orelha direita distraiu meu olfato. Sequer lembro se seu perfume nessa vez antecipou sua presença ou foi o rastro dela. Aquilo na orelha, o que é?, pensei. De longe, eu não conseguia identificar, mas já conseguia estranhar.
Um telefone! Mais de perto, pude perceber.
Cumprimentei-o distraída por força da surpresa. Sim, eu já tinha visto um celular daqueles, dos bem modernos, que se fixa à voltinha da orelha como um urso agarradinho hi-tech. Só que vi na revista. E li como eu acho que um jovem lê uma matéria sobre geriatria, ou seja, não imaginei que se materializaria na minha frente pouco tempo depois.
Olha, não tenho nada contra penduricalhos em orelha ou novidades tecnológicas. Mas uma coisa é enfiar os fones de um tocador de música, por exemplo, e sair caminhando por aí balbuciando letras ou com um sorriso desenhado no rosto por causa da melodia. Agora, um celular? Quem precisa ter um telefone acoplado na orelha e andar por aí com a testa franzida, como que resolvendo um problema de segurança nacional estilo Jack Bauer? Quem? Que diabos tem de tão importante para ouvir e saber?
Haja paciência.
Naquele dia acho até que podia estar mal-humorada, mas tive certeza de que, se estamos mesmo nesse caminho, vou puxar a cordinha, me dá o ladinho porque eu quero descer já.

26 abril 2006

O peso das palavras

Eu odeio quando o jornalismo caga regras. Odeio. (Odeio e caga, duas palavras que eu não queria usar, porque são pesadas, e eu respeito o peso das palavras, principalmente das escritas.) De novo: odeio. Sabe o jornalismo do “como”? Como fazer isso, como não fazer isso, como melhorar aquilo, como, como, como... Saco. É pretensioso, é falso, porque o jornalismo retrata a vida real. E a vida das pessoas, ao menos as mais interessantes, não consegue seguir todas as regras. Até porque, se tu segue todas as regras, tu não questiona nada. E, se tu não questiona nada, nada muda. É preciso muito comprometimento para cagar regras. Parêntese: sabe a história da mãe que foi pedir a um sábio/monge/curandeiro, sei lá, que pedisse para o filho dela parar de comer doces porque estava fazendo mal e tal? Eram só algumas palavras, mas o monge mandou ela vir um tempo depois. Aí, quando ela veio, ele fez o que ela pediu, disse para o guri parar de comer doces. Então, ela quis saber por que o veinho (eu acho que era um idoso, para combinar com “sabedoria”) não tinha feito isso na primeira vez, já que ia só falar. O sábio/monge/curandeiro explicou o básico: como ele podia aconselhar o guri a parar com os doces se ele mesmo comia doces? Então, primeiro se livrou ele do hábito para então cagar as regras pro guri. Nesse caso, e só nesse caso, as palavras (ainda que regras) têm força.
É por isso que eu odeio quando o jornalismo caga regras. E é por isso que eu meio que não gosto do meu post anterior. Eu não quero explicar nada nessa vida – e, ali, parece que estou tentando explicar. Não estou certa do que escrevi, cadê a força das minhas palavras?

Eu acho que o jornalismo tinha de se limitar a fazer o que lhe é genuíno, o que foi a sua origem e a sua consagração, o que lhe faz sedutor e imprescindível: contar histórias. Tão apenas contar histórias. E não é pouca coisa: é a função monumental de contar a nossa história, sem regras, sem “comos”, prestando um serviço à História (agora, com letra maiúscula). Para a História-mãe, vamos parecer uma geração de leitores débeis, que precisava de “comos” diários para tudo.

As Bonecas Russas

Tem uma poesia do Affonso Romano de Sant’Ana que relaciona a infinidade de palavras que temos à disposição com as pessoas pelas quais passamos nessa vida – e podia-se dizer aqui o contrário: as palavras pelas quais passamos e as pessoas que temos à disposição. Meio lamentoso no início do texto, ele não entende como nos contentamos com a sonoridade das primeiras e o colorido das vestes das segundas, sem pararmos para conhecer quem são todas estas e o que querem realmente dizer todas aquelas. Com uma pitada de angústia, mas conformado e, sobretudo, maduro, termina o poema dizendo algo como isso: “não é possível esgotar o dicionário nem amar completamente tudo o que encontramos”.
E eu lembrei dessa parte depois de ver no cinema As Bonecas Russas, continuação de um filme que está ali no meu profile como um dos preferidos: O Albergue Espanhol.
Tem gente que está dizendo que o Bonecas é ruim. Ou, um pouco diferente: que o Albergue é melhor. E é, mas o que é desagradável no Bonecas o torna tão bom como o seu antecessor. Tudo bem que parece meio lento, acho que tem a ver com o fato de que o Albergue contava a história de várias pessoas, e essa continuação se concentra mesmo no personagem principal. Mas até isso – mais espaço para o personagem principal - faz sentido. Tem uma hora na vida que não conseguimos dar conta do tamanho que tomamos, e é preciso abrir mão de algumas dessas várias coisas sob pena de não aproveitarmos bem nenhuma delas. Vou explicar.
O espectador que compara o Bonecas com o Albergue está, na verdade, comparando o que realmente somos com o que imaginamos para ser. O Bonecas é o Albergue que se confronta com a hora h, com o primeiro dia do resto de nossas vidas, que se confronta com as escolhas. Ou seja: tem de cruzar a linha para o lado de lá e se comprometer com algo. Dá para chamar de amadurecimento também. Aí, não tem comparação mesmo com o Albergue Espanhol, que mostra o inverso disso: todas as nossas possibilidades. O saboroso do Albergue é que ele legitima nossa ânsia por liberdade, a gente compartilha com o personagem a deliciosa descoberta de que podemos deixar para trás o que não nos diz respeito a fim de procurar aquilo que faz sentido unicamente a nós mesmos. Somos os heróis numa jornada.
O indigesto no Bonecas é que essa liberdade presta contas: “e aí, o que vai querer depois de experimentar tanta coisa diferente ou ao menos tomar conhecimento, pelos amigos que seja, de que elas existem? Ou vai ficar esperando a próxima boneca que vem, exatamente como no brinquedinho russo?”. No Bonecas, chegamos lá: de herói a rei de nossa jornada, e a maioria pode pensar, como agravante, “era só isso mesmo?”. O Bonecas é assumir o que nos tornamos, é parar de ensaiar, é a angústia das definições, do ter de abrir mão de algo, do apostar sem certezas, tudo bem embaladinho pela urgência do tempo. E, se o espectador com seus lá 30 anos sai meio assim/assim do cinema, achando que não gostou, está provando que o filme é tão bom como o Albergue. Não era para gostar, era para se incomodar mesmo – até porque o poeta está aí para nos passar a mão na cabeça, paternal: “não é possível esgotar o dicionário nem amar completamente tudo o que encontramos”.

Importante: As Bonecas Russas não é nada melodramático como sugere esse meu texto (eu que exagerei, me perdoem!). Pelo contrário: tem bom humor tanto quanto O Albergue Espanhol. Aliás, rir da história (leia-se: da gente mesmo) talvez seja uma boa prova de maturidade sem ranço, aquela que não impede a gente de mudar de idéia apesar de todas as escolhas feitas e anunciadas.
O filme, e muito menos o texto, não é sobre permanências ou comprometimentos do tipo “até que a morte nos separe”. É sobre avançar casinhas, pular de nível, se dar uma promoção na carreira da vida... (cruzes, que brega...). Como é que faz isso na vida real? Sei eu. Até porque, se fosse fácil saber, não teria virado filme.

15 abril 2006

Guisadinho

Todos os dias passa um. E talvez seja o mesmo. Até porque, tão à margem, poucos (para não dizer ninguém) interessam-se por sua cara ou identidade. Sempre à noite, ou madrugada alta, e o silêncio dessas horas parece dar um tom solene, dramático à cena.
Já acordei por volta das 4h com o barulho feito por eles.
Ou ele. Vem nas segundas, quartas e sextas porque é dia do lixo orgânico. E nas terças e quintas também, vezes do lixo seco. Não é gari por profissão, mas vive do que eu e você julgamos não valer mais nada. Está fazendo “compras”. Ouço as rodinhas trepidarem o carrinho de supermercado na calçada – adotou o veículo por praticidade, claro, mas é inevitável a absurda analogia: se a minha rua – e provavelmente muitas outras – é o corredor, o detalhe mais chocante é que as prateleiras desse “súper” são as lixeiras de prédios e casas.
Sim, eu me viro para o lado e consigo voltar a dormir. Vai ver acho normal, né?

***
Lembrei de outra coisa, que me deixou pequenininha.
Eu não faço rancho de supermercado. Principalmente, porque não cozinho. Às vezes, cozinho, mas tem de ser por diversão. Então, não adianta procurar na minha casa arroz, feijão, carnes congeladas, “mantimentos”, como diria a minha mãe. Sim, a minha geladeira tem crises existenciais sobre qual sua função no mundo.
Ainda assim, eu vou várias vezes ao super comprar – além de frutas, leite, erva-mate e “a-coisa-q-estou-com-vontade-de-comer-aquela-hora” – bobagens. Esses tempos, lá estava eu, na beirinha do caixa, com um pote de uva-passa branca. Bem faceira. Eu adoro uva-passa, principalmente branca. Sim, estava só com o pote. Ah, e talvez carregasse comigo também uma garrafa de água. Mas só o pote era quase R$ 4. Juro. Uva-passa não é um troço barato. Na minha frente, uma senhora. Estatura média, mas forte, rosto castigado por traços que não me pareciam de velhice e um semblante frágil. Frágil não, sem vitalidade. Gola um tanto puída da camisetona que ajustava-se até as ancas e depois pendia como uma pequena saia sobre a calça um tanto curta, deixando à mostra os chinelos com pés de unhas mal-pintadas. O cabelo estava mais pra domado do que pra preso.
Dinheiro apertado na mão, ela passou arroz, leite, um ou dois tomates, uma cebola, mas o guisadinho ficou descongelando na sua mão. Não ia dar. Faltaria R$ 0,50 ou menos. A palma quase encobrindo toda a embalagem, ela olhou para a carne, olhou para a tela que exibia o valor total já alcançado com as compras e então desistiu. Empurrou o pacotinho para longe. Ia deixá-lo.
Céus.
Dei o dinheiro a ela. Ficou surpresa, mas aceitou. Acho que balbuciou um obrigada, sem me olhar nos olhos – atitude que me pareceu vergonha. E foi embora com “todas” as suas compras.
Eu não sei se ela era realmente pobre ou se apenas tinha calculado mal quanto gastaria naquela manhã. Não sei se ela ou uma criança estava passando fome aquele dia, se justamente aquele era o dia mais esperado da semana, porque iam comer carne depois de muito tempo, ou se o guisadinho era pro cachorro de uma madame. Eu não sei se ela podia estar nas ruas, de madrugada, com carrinhos de supermercado, como aquele que me acorda às 4h.
Só sei que, até adormecer aquele dia, fiquei pensando na minha frescura de uva-passa, custando quase o dobro do preço daquelas gramas de guisadinho.

02 abril 2006

Ler é uma bagunça

Os livros que li dariam um livro. Bem grosso, se eu pudesse juntar aí também o lido em artigos de revistas e de jornais. Explico. É que não resisto a sublinhar frases, trechos. Duas vezes já tive de comprar livros que me foram apenas emprestados porque não consegui não me apropriar deles com rabiscos e observações em margens e entrelinhas.
E tem o outro lado também. Dependendo de quem pede, fica difícil emprestar os meus livros, porque acabam tão pessoais, tão reveladores, quase diários, que exibi-los exige uma certa coragem, um certo desprendimento. Algumas revistas também. É como se eu tivesse levado para sempre o enunciado daquele tema de aula e de casa dos tempos de colégio: ‘sublinhe a oração verdadeira e comente as falsas’.
Eu traço links por aí. Depois de lidos, artigos de livros e revistas se transformam em hipertextos em uma web íntima. Navego por várias loraines, ou por diferentes épocas de uma mesma loraine, ao voltar aos livros depois de um tempo. Há vários textos atrás daqueles impressos. Então, se eu juntasse tudo o que já sublinhei nessa vida de leitora média, teria um livro. De auto-ajuda*, literalmente.


* Na boa, qual livro não é de auto-ajuda? Que livro não te ajuda? Eles sempre ajudam, mesmo os didáticos, de colégio, que sutilmente nos ensinaram a procurar por aí as orações verdadeiras e comentar as falsas. Atendendo ao convite quase sem se dar conta, chegamos a outros livros, que nos ensinaram a duvidar das frases verdadeiras e dar um crédito àquelas que parecem falsas. Com as certezas bagunçadas, pulamos pro próximo livro. E pro próximo... E pro próximo... Fazendo de conta que a gente quer realmente arrumar a bagunça.

Simetrias

A Cláudia Laitano escreveu uma crônica com esse título aí, sábado, em Zero Hora. De uma forma bem mais elegante do que esta, que foi como a minha lembrança guardou a idéia, ela mencionou um fio – perceptível por nós, espectadores aprisionados às pequenezas do presente, somente em algumas iluminadas vezes – que perpassa o todo, ligando acontecimentos e épocas – ou os sentimentos sobre estas e aqueles. Aí, a partir do Simetrias da Cláudia, meu pensamento (simetricamente) encontrou de novo uma coisa que há tempos eu queria escrever aqui e sempre adiava.
É que, mesmo sem conseguir explicar direito, eu acredito numa simetria suprema. Eu acho que existem três ou quatro sentimentos, três ou quatro leis, três ou quatro mandamentos, três ou quatro motivações – eu não sei que nome dar a eles, se sentimentos, leis, mandamentos ou motivações -, enfim, três ou quatro “algos” básicos, a origem do todo, e que apenas se repetem nas inúmeras esferas da vida, da natureza e do mundo, maculados pelas circunstâncias e por isso recebendo outros nomes. Então, no fundo são aqueles três ou quatro algos iniciais, repetidos indefinidamente, com alguma roupagem superficial porque influenciados pelo seu tempo e espaço – sempre relativos, o Einsten já garantiu.
Essa sensação tem a ver com a minha teoria do arco dos antônimos complementares, que eu criei numa mesa de bar e nunca mais consegui explicar direito a ninguém (nem com o desenho no guardanapo). Vou tentar: imagine-se em uma das pontas de um arco bem arredondado, tomado por um sentimento de ódio, por exemplo. Na outra ponta do arco, está o antônimo desse sentimento, o amor. Aí, você começa a se afastar da ponta do ódio, porque a vida precisa seguir e tal. Se afasta, se afasta, se afasta. Mas, como você caminha num arco, quanto mais você se afasta e se aproxima do amor, mais perto você está de novo do ódio, porque é um arco, lembra? Um círculo que, além de não ser perfeito, não se fecha. Eu descartei o círculo perfeito para essa teoria porque daria uma idéia de placidez, de fluidez, que eu acho incompatível com a forma como lidamos com esse afasta-e-aproxima de sentimentos/leis/mandamentos/motivações propulsores da vida – como o amor e o ódio. E também porque a gente precisa achar que está indo a algum lugar que não é o mesmo do ponto de partida. Um círculo poderia sugerir isso, e, ainda que a vida seja isso, é melhor parecer que não, para ficar atraente. A gente está sempre partindo e chegando aos mesmos pontos – ainda que com novas roupagens, graças à relatividade – e isso precisa ser uma descoberta, não algo previsto e sabido. Até dá para dizer que amor e ódio são o mesmo sentimento, apenas com identidades diferentes num complô para acreditarmos que o mundo é diverso.
Ok, eu sei que este post está difícil... Ele bem que poderia fazer parte da série “Não estou nada bem”. Talvez eu esteja falando não de uma, mas de duas coisas, ou de várias, querendo explicar (pretensiosamente) o mundo numa única teoria... É isso mesmo! :)
Segue-se outro exemplo, então, desse mundo absolutamente simétrico, só a gente não vê.
No Globo Repórter especial sobre a viagem ao espaço do brasileiro Marcos Pontes, a reportagem entrevistou um astronauta que foi quem mais horas já ficou fora de naves, entre as estrelas, com a escuridão do infinito na frente, dos lados e às costas. Sabe o que ele sentiu?
- Paz, uma sensação completa de paz – ele contou.
E aí eu lembrei que essa é rigorosamente a mesma sensação sabe de quem? De quem mergulha. No fundo do oceano ou no infinito do espaço (e podia-se dizer “no infinito do oceano ou no fundo do espaço”), sentimos a mesma a coisa.
Te convenci?

01 abril 2006

Linha de produção

Vai abrir um salão de beleza na Nilópolis – a rua ou a avenida, tanto faz, que para mim será sempre “aquela que vira Nilo (Peçanha)”. Mais adiante, se amontoam pelos menos outros dois, um destes bem evidente, na esquina da Vicente (da Fontoura) com aquele trechinho de rua que alcança a Protásio (Alves) chamado de Neusa Brizola – outra daquelas ruas que vão ser sempre lembradas por qualquer coisa menos pelo nome que lhe deram. A Neusa era um beco, foi aberta à força. Antes, quem vinha da Nilo tinha de circundar uma quadra para chegar até a Protásio. Um parêntese antes de prosseguir. Tem um pessoal ali na Neusa, uma família, acredito, que fica todos os dias e o dia todo sentada em cadeiras de palha na calçada. Os integrantes da tal família se revezam, na verdade, porque é preciso manter algumas cadeiras vazias – pelo bom andamento do serviço, que é esse: “Empalha-se cadeiras”. Eles ficam ali tão à vontade, que me faz pensar: você tira a pessoa do beco, mas não tira o beco de dentro da pessoa, sabe?
Mas, enfim, voltando: eu contava que vai abrir um salão de beleza. Vi a faixa esses dias. Suspirei quase sem sentir. Uns dias depois, diante de outra faixa, estendida em prédio na altura da Venâncio (Aires) em que desemboca a Travessa da Paz, lembrei do salão, o suspiro voltou, ganhou forma e eu o entendi.
Dizia a faixa da Venâncio: “Breve aqui imobiliária”. Mais uma imobiliária. Mais um salão de beleza. Quem precisa de mais um salão e de mais uma imobiliária? Senti um cansaço de vida... Não que eu esteja amaldiçoando o negócio dessa gente empreendedora – até porque não entendo nada de microempresa ou administração. Pelo contrário: é a crença na boa intenção e na força com que essa gente se jogará na empreitada que faz pesar meu desânimo diante das faixas. Cansaço, pessimismo meu de ver tanta energia direcionada para fazer sempre o mesmo, para chegar aonde alguém (no caso do salão e da imobiliária, muitos alguéns) já chegou.
Por que, podendo escolher tantos caminhos, a gente prefere o já percorrido? Por que, podendo ser o primeiro num novo guichê, a gente escolhe entrar na fila? Por que, podendo inventar moda e modos, a gente escolhe a linha de produção*?
Sim, eu sei a resposta: porque é mais fácil. Não tenho propriedade para te (me) convencer do contrário. Minha vida está mais para linha de produção mesmo, apesar da moda e dos modos que, ainda que não inventados, estão sendo sonhados.

*Da série “asterisco metido a besta”
Associação possível com a família do beco: (com tanta liberdade) a modernidade tirou a gente da linha de produção, mas não tirou a linha de produção de dentro da gente.

Seguinte, ó

"... a vida concreta sempre tem o direito de condenar as idéias, enquanto as idéias podem criticar e querer mudar a vida concreta, mas não têm o direito de condená-la."

É do Contardo Calligaris essa frase. E em breve eu prometo dar prosseguimento a esse post, para que faça sentido.

Bem juntinhas

Bem juntinhas
eu e a Búio