31 janeiro 2006

Rótulos, embalagens e etiquetas

Pensa num supermercado. Imagine-se num corredor de coisas miúdas, ensacadas, enlatadas. Diversas cores, milhares de letrinhas naqueles produtos todos. Informação, informação, informação. Se você respeitar ao pé da letra os profissionais que ganham a vida assim, desenhando e elaborando textos para rótulos, embalagens e etiquetas, e ler tudo, vai vencer um único corredor a cada ida às compras. Dois, talvez, se você estiver com tempo. E a leitura, digo, as compras continuam na próxima vez. Não impressiona você pensar que cada letra, cada imagem, cada cor naquele produto foi planejada? Demoradamente planejada, na certa. Imagina a reunião para decidir a embalagem do grão-de-bico.
Há um mundo naquelas letras miúdas de rótulos, embalagens e etiquetas. O idioma é o português, na maior parte delas, mas seguido encontramos o quimiquês de “antes”, “atos” e “ódicos” que sequer vimos no colégio, imagina lembrar o que significa. Não era assim antes, ou nunca parou nas suas mãos uma revista velha, com toscos reclames (anúncios) de 30, 40 anos atrás? As embalagens eram apenas... embalagens. Vinham o nome do negócio, uma frasezinha sugerindo do que se tratava e era isso. Cores básicas. Bicolor, no máximo. Hoje, não.
Hoje, rótulos, embalagens e etiquetas devem ser projetados por profissionais com MBA. Pensa no café da manhã, por exemplo. Não dá tempo de abrir o jornal se formos ler de cabo a rabo o que está escrito no saquinho do pão (light, com centeio, aveia, mel, gergelim, 0% de gordura, rico em fibras e enriquecido com ferro) e no potinho da margarina (sem sal, sem gordura, rica em polinsaturados, enriquecida com ômega sei lá qual número). Ok, mas eu leio. Confesso que gosto. É como se, ao mastigar e ingerir um produto tão especial, enquanto leio o quanto ele é especial, o efeito saudável duplicasse, triplicasse. E o café da manhã quase vira um ritual de cura.
Etiqueta de roupa, então. Nunca mais vi apenas o P, o M e o G. Um parêntese: acho o GG tão ofensivo... Deve ter sido uma das primeiras tentativas (no caso, um tanto grossa, insensível) de pensar as etiquetas como algo dinâmico, um meio de comunicação, tratando o cliente fora dos padrões. Fecha parêntese. O fato é que, hoje, há peças que chegam a ter três, quatro etiquetas presas à barra, uma por cima da outra, como uma colônia de carrapatos têxteis. E aí você chega em casa e precisa reservar um tempo para, antes de guardá-las no armário, sentar-se numa poltrona e ler as roupas. Dependendo do número de peças, as etiquetas vão se empilhando no braço da cadeira e, depois, quase enchem o lixinho seco sobre a pia da cozinha...
Esses dias, comprei um sutiã. Não dá nem para chamar de lingerie. Sutiã básico, simples. Mas eram três etiquetas, fora a do preço. Em uma delas dizia que não podia lavar nem secar na máquina. Não podia usar detergente, mas apenas sabão neutro. Não podia torcer, só apertar. E tinha de secar à sombra. Sim, usar podia – ao menos não encontrei nada dizendo o contrário e acho que li tudo. Cruzes, pensei, isso não é uma roupa, é quase um ser vivo. Acho que comprei um tamagochi.

Brincadeirinha sacana

Desde pequena, essa coisa de pensar me fazia pensar. Lembro que seguido me metia – por prazer – em um raciocínio tortuoso e sem fim, estúpido até, e certamente inútil. Eu voltava a ele, antes de dormir, por exemplo, como se fosse um passatempo, um jogo, um brinquedinho guardado no meu armarinho imaginário de criança quieta. Era assim, eu começava mentalmente:
- Estou pensando que estou pensando. Se estou pensando que estou pensando, então estou pensando que estou pensando que estou pensando. Mas, agora, estou pensando que estou pensando que estou pensando que estou pensando. Logo, estou pensando que estou pensando...
E não parava mais, um espiral cavando o infinito, já que para pensar que eu estava pensando eu tinha de pensar isso, e ficava voltando para trás (ou seria indo pra frente?), tentando chegar ao primeiro pensar (ou ao último). Quando ficava agoniante, eu parava. Ou achava que parava.
Não é por acaso, então, que escrever sobre pensar/pensamento tem sido recorrente aqui neste blog. Eu penso muito. Muito e desnecessariamente. Eu desperdiço pensamentos, porque eu me contento com a ginástica passiva do pensamento, e não miro o seu produto ativo, a ação resultado dele. Eu não aplico a maior parte até porque, quando percebo que me aproximo de alguma conclusão, vou perdendo o interesse. Gosto é do estúpido e inútil espiral da brincadeira de criança quieta. Só que tem hora que pensar atrapalha. Tem muitas horas, aliás – tornando a brincadeira meio séria, cara demais.
Mas como se economiza pensamento? Onde é o “off”? O pause ao menos? Se dormimos, temos a impressão de que não pensamos. Mas e quando pensar não deixa dormir? Porque basta você pensar (!) “Não vou mais pensar nisso” para o “nisso” não sair mais da sua cabeça*. O sono não tem vez com um pensamento treinado em academia como o meu. Pensamento marombado: só quer volume, só quer se admirar no espelho, nada de conteúdo efetivo.
Pior mesmo quando o pensamento não encontra palavras, está na sua fase pré-histórica, imponderável, uma sensação apenas. Bah, aí a insônia vai longe.
Mas, se eu não parar de pensar agora, esse texto não acaba.


*Do Arnaldo Antunes: “Pensamento vem de fora / e pensa que vem de dentro, / pensamento que expectora / o que no meu peito penso / Pensamento a mil por hora, / tormento a todo momento / Por que é que eu penso agora / sem o meu consentimento?”

Asterisco do asterisco: o * é o avô do link, e o hipertexto é neto da nota de rodapé, né?

Ia escrever, mas não consegui

Muitas vezes, não são as idéias que estão na minha cabeça, mas sim, já prontas e inteiras, as frases, os parágrafos completos, encadeados, com sentido. Aí, sem fazer barulho, sem desviar a atenção para nada, saio pé por pé, mas não adianta. Basta eu pegar a caneta ou buscar as letras no teclado, basta uma folha de papel ou a tela em branco do computador na minha frente para tudo desaparecer. Como se o vazio do suporte – papel ou tela – se olhasse num espelho.
Como se as frases antes ali fossem clandestinas, e a presença do papel e da tela, alguma forma de oficialidade repressora, de autoridade censurante. Como se as frases fossem algo selvagens, escondendo-se da civilização. E, aí, como o homem branco se aproximando de uma tribo acuada, minha consciência tenta convencer as frases a voltarem, a deixarem a sombra dos arbustos. Elas vêm, receosas, mas vêm. Cheias de pudor, mas vêm. Diferentes a ponto de comprometer a essência, mas vêm. Não têm a mesma vivacidade, espontaneidade da primeira vez em que as conheci, quando brincavam livres de mim.
E tenho de me contentar em pôr no papel ou na tela apenas o que foi possível, o que a oficialidade conseguiu. Fica a impressão de que traí minhas próprias idéias, ou que estou enganando o leitor. É muito grave não conseguirmos contar tudo? Para quem tenta, é. Mas que idéia é livre no papel? Que texto escrito não é uma escolha para a consciência e, então, uma forma de prisão para as idéias?

25 janeiro 2006

Da série "Não estou nada bem" (3)

Eu poderia usar a imagem de uma borboleta, e na certa alguém já tentou algo parecido. Uma borboleta sem paradeiro, mas voando leve, na procura tranqüila de qualquer coisa, pousando aqui e ali, cochichando traquinagens com folhas e flores, agradável como a anfitriã para seus convidados em uma elegante e perfumada festa que está começando.
O ato de pensar pode sim ser essa imagem.
Mas, em outras vezes, o pensamento é um inseto bem menos primaveril. Bem menos gentil e sociável que uma borboleta. Uma mosca, por exemplo, uma mosca-gigante _ daquelas que devem ser entre suas próprias iguais alguma aberração genética, um ET na Terra das moscas. Vem zumbindo de longe, decidida, como um agente em missão dentro de um jato. E o zumbido toma conta do ambiente enquanto ela dá rasantes, atordoando, fazendo todo o resto sumir de sua atenção. Apenas ela, ela, ela.
Às vezes, em vez de flanar sorridente e receptivo naquele salão de festas cheio de amigos, o pensamento vem solitário num corredor que você nem sabia que existia – escuro, cinza, úmido –, pisando firme, vem que vem, emburrado. E vem na sua direção, a marcha crescendo, crescendo, crescendo, e ele pára na sua frente, bem perto. E fica ali, ofegante, ocupando espaço, barrando seu caminho, exigindo um entendimento, uma solução, mas sem acrescentar rigorosamente nada para que isso ocorra. Só cara feia. Mesmo que você o encaçape, como é possível fazer com a mosca-gigante usando um copo com a boca virada para baixo, ele fica lá, como ela, se debatendo contra as paredes, ensandecido.

15 janeiro 2006

Infância (4)

Da sala, de dentro da minha casa, ouço a menina perguntar à mãe. As duas passam no meu trecho de calçada a tempo de a pergunta entrar inteira pela janela:
- Mãe, ainda estamos no horário de verão?
Aí, me lembrei de outra “preocupação” comum às crianças, quando estão começando a freqüentar a escolinha.
- Mãe, amanhã já é segunda-feira?
Senti inveja (saudade?) dessa alienação infantil. Desse pedaço de vida alheio à pressão do tempo, ou às informações que antecipam a passagem irreversível dele, produzindo uma dose de ansiedade que contribui para seu suposto peso. Inveja dessa condição infantil imune a prazos tão enganosamente inofensivos. Inveja principalmente, agora me dou conta, do luxo de viver sem precisar saber que horas são – se estão atrasadas ou adiantadas – e em que dia da semana estamos porque há alguém por perto, bem perto, para se preocupar com isso. E melhor, olha que delícia: alguém pronto para dar a resposta certa e que, porque tem preocupações mais sofisticadas, o faz com a leveza e a segurança de que a criança nem sabe que precisa.

Zanzando

Tem um caminho, um trecho de calçadas tão familiar, em que o ir é tão automático, que comecei a olhar mais vezes para o lado. E fui juntando uns detalhes. De quadra em quadra, percebê-los ajuda a passar o tempo até vencer todo o trecho.

1
Bem no início, tem um restaurante daqueles que escreve com giz, no cavalete negro, “hoje mocotó”. Daqueles em que o cara do caixa fica entrincheirado, como numa casa-mata, um amontoado de pacotes de salgadinhos, balas, chocolates, cigarros esquizofrenicamente organizados. Com sorte, você vê o rosto do cara, mas não sabe se ele está nu ou de saias. Mas o detalhe aqui está na mesa colocada à beira do piso lavado com vassoura, água e sabão a cada fim de almoço, quase se precipitando à calçada: sobre a toalha de plástico, uma folha de caderno colada num papelão, apoiado no porta-guardanapo de papel, identifica “reservado - chefia”.

2

Duas quadras depois, um prédio com jeito de abandonado é um açougue ativo. Paredes cinzas, chão coberto por um piso que me lembra o da casa da minha avó materna, daqueles com desenhos geométricos desbotados numa textura que não vê cera há tempos. Cor ali só o rubro sanguinolento das postas de carne penduradas nos ganchos dentro do balcão envidraçado e refrigerado – daqueles que pode ter sempre uma mosca pousada no cantinho interno, exibindo seu ventre para quem tenta escolher um pedaço de churrasco. O detalhe aqui? O açougueiro. Ele é discreto, quase nunca está por ali, surge de repente somente quando alguém aparece interessado em seu produto. Não está de avental. Mas de jaleco, num branco limpo impressionante. Cabelos grisalhos aparados, óculos, gestos medidos. Passaria tranqüilamente por médico, um dentista, eu acho.

3
Os próximos três estabelecimentos que me chamam a atenção estão na mesma quadra, um ao lado do outro, praticamente. Na ordem, primeiramente uma vitrine que desmente completamente a placa luminosa sobre a entrada. Expostos, produtos que vão de guarda-chuva e sobrinha a bonequinhas de plástico, passando por touca térmica e um kit chinelos-toalha-roupão. Um bazar? Nada. Uma lavanderia. Se espiar pra dentro, lá no fundo estão as máquinas. Ao lado do bazar, ops, da lavanderia está, claramente, uma padaria. O cheirinho irresistível a qualquer hora do dia não deixa dúvidas. E isso não é força de expressão: já passei por ali em horários bem diferentes, e os pãezinhos frescos estão por lá, atiçando olfato e fome. O nome da padaria? Cheiro de pão. Vizinha aos pães, uma sorveteria que parece esquecida ali pelos anos 50, a começar pelo nome – Delícia. O piso tem o brilho e a frieza dos azulejos que cobrem as paredes. Você parece estar entrando em um banheiro. O balcão, em azul, e as mesas, em cinza, são de fórmica. As cadeiras, cor de creme, são de plástico, naquele design em que assento e encosto são uma coisa só, num desenho arredondado, sugerindo que seu traseiro encaixa perfeitamente ali. A máquina registradora no caixa (que se destaca no balcão por ter uma proteção de vidro e uma plaquinha pendurada com correntinhas onde diz “Caixa”) é mesmo uma máquina registradora: cor de chumbo, enorme, robusta, em que o preço a ser pago é mostrado no cantinho superior, com números, em branco, num fundo negro, que giram unidade a unidade, sabe? Sempre que passo por ali, tenho a impressão de que o Nelson Rodrigues poderia ter escrito uma parte de Engraçadinha para aquele cenário.

4
A próxima parada é um minimercado. Caixas de madeira para as frutas, edições do jornal mais popular da cidade, cuca feita em casa, balcão dos picolés e a oferta do dia dividem a atenção dos passantes na porta do estabelecimento. Nada de extraordinário, né? Deu para imaginar de que tipo de armazém estou falando. Nada me faria citá-lo aqui, exceto por um detalhe. Pendendo do centro do batente da porta, preso a uma corrente que o deixa a meia altura do chão, cadeado ali, adivinha o que é? Um isqueiro. O dono do lugar deve ter cansado de, com tanta opção nas prateleiras, atender quem chega ali perguntando apenas “Tem fogo?”. O armazém fica em uma esquina, a uns passos de um viaduto, que também tem um detalhe. Não vale um texto só para ele, mas é bom dizer que se trata do vão debaixo de viaduto mais perfumado (ou fedorento) da cidade. É que um ambulante faz ponto ali todo dia. E ele vende incensos. Dezenas deles.

5
Estamos perto do destino e ao menos mais dois registros julgo valer a pena. Um deles é outro armazém, aos moldes do descrito anteriormente, exceto pelo fato de o dono preferir exibir flores e não comida. A atração ali é Blanc, um cachorro que carrega no pescoço uma plaquinha de metal com seu nome e origem. Vive solto por ali. Acompanha o movimento, indiferente aos “ó, que bonitinho” dos pedestres. Deitado na beira do piso com as patinhas dianteiras penduradas, apontando para a calçada, o semblante é de quem se sente dono daquele trecho da avenida. O armazém fica ao lado de uma pet shop, que provavelmente Blanc nunca freqüentou, nem precisa. Soberano a tudo é o que ele parece.
Por fim, vale contar ainda aqui da loja de produtos ortopédicos duas quadras adiante. Ou melhor, não vale. Ou você confiaria em uma loja dessas que exibe na porta um esqueleto vestido com um jaleco e um estetoscópio?

14 janeiro 2006

Taxistas (cont.)

Não, não pretendia uma continuação, mas não é que pintou outra história?

5 – o vendedor
– A Mariana está incomodando aí? – pergunta o taxista, interrompendo o silêncio da corrida após o tradicional “aonde-vamos-por-onde-vamos”.
A passageira se faz um pouco de louca, vai que ele não está mesmo falando da boneca de pano acomodada com ela no banco de trás, no assento ao lado. Podia muito bem chegar até o destino sem mencionar a inusitada companhia, percebida de imediato ao entrar no carro.
– Ãh? – disfarça.
Mas ele estava sim falando da boneca de pano. Bem feitinha a Mariana, obra da mulher do taxista. E ele a coloca ali, a andar pela cidade até que alguém a compre (putz, esqueci o preço...). Priscila, loira, e Maria, morena, já tinham ganhado paradeiro, no quarto da filha de uma passageira e da neta de outra. Mariana é ruiva.
– É toda feita de fuxico – ele explica.
Que boa idéia, a passageira reconhece, já com a Mariana no colo.
– A gente sugere o nome, né... O cliente acata se quiser. É a minha mulher quem põe os nomes.
E a lábia do cara é melhor ainda. Cheia de psicologia: não se trata da compra de “uma” boneca, mas da Mariana.
– E tem o Desconectado – recomeça ele lançando um dos braços por trás do banco dianteiro para exibir o mais próximo possível do rosto da passageira o ímã de geladeira feito de lã, com quatro perninhas e um par de olhos cujas “íris” se desalinham. Também obra da criativa esposa, ele se orgulha, aproveitando o tempo do sinal fechado para iluminar o bichinho com a luz da tela do celular.
– É o que mais vendo. Dois reais.
O bichinho está lá agora, preso à porta da minha geladeira.
– Te dou uma idéia de pôr perfume nele, fica legal – sugere o taxista na despedida. – E se quiser mudar o nome dele...
– Não, não quero. Desconectado é ótimo.

11 janeiro 2006

Roleta

Não adianta, parece que zoam com a cara da gente. Nunca é como se pensa que vai ser. Sempre achei que a vida (amadurecimento, amigos, amores, filhos, netos) ia acontecendo enquanto a gente se dedicava ao trabalho. Os meus ídolos têm essa biografia. Mas não é que há algum tempo tem sido necessário fazer justo o contrário? Deixar o trabalho acontecer e concentrar esforços na vida. Concentrar mesmo, porque o atraso é significativo.

Taxistas

Ônibus ou táxi? Ônibus, é claro. Não serve nem lotação, com aquelas poltronas pretensamente confortáveis, aquele corredor estreito, aquelas cortinas! Claustrofóbico demais. Já o problema do táxi é a intimidade forçada. Tem algo mais íntimo do que o interior de um carro? Pensa em pegar carona. Agora, pensa em uma carona à vontade, sem poses, sem equilibrar-se em meias palavras ou cavar o fundo dos silêncios atrás de um algum assunto para fazer a paisagem passar mais rápido. Ficou mais difícil pensar em alguém, né? No táxi você fica ali, à mercê de um estranho, do qual, em tese, você não pode desconfiar como faria no caso de uma carona pega na estrada, por exemplo. Afinal, que feio desconfiar de um taxista-trabalhador-pai-de-família! Então, o risco é velado, você não se prepara inteiramente para ele. E, fora essa paranóia, vamos combinar: um carro, um motorista só para você é brega demais. E burro. Para o dia-a-dia, acho o transporte público muito mais inteligente, mesmo que haja tanto a melhorar nele*.
Mas a questão é que tive de usar táxi mais vezes ultimamente. E surgiram histórias. Taxista é cheio de história – essa é a parte que ameniza. Só nos últimos dias, quatro – duas testemunhadas pessoalmente e a outra metade ouvida por aí. Primeiramente, as duas terceirizadas:


1 – o bombeiro.
Corrida looooonga, com horário pra chegar, não há tempo a perder. O taxista parece saber, porque corre como se uma passageira estivesse preste a dar à luz. De repente, dá uma guinada na direção e desenha meio cavalinho-de-pau na avenida (ainda bem) vazia.
- Caaaaaaaaara, olha aquilo lá – diz, acomodando o carro mais junto ao meio-fio.
Abandona o táxi às pressas, com o extintor de incêndio nas mãos, deixando aberta a porta e a boca dos passageiros. Vai acudir um senhor com a kombi em chamas. Na volta, situação controlada, extintor inutilizado, diz antes de seguir a corrida:
- Maluuuuuco, a brincadeira me custou uns 30 pau.
Será o preço do extintor?

2 – o viajandão

O casal ataca o táxi da calçada e começa a questionar a sorte ao ver o rosto do motorista. Ele não parece, digamos, animado. A primeira impressão é de cansaço, sono. A voz arrastada e a preocupação em justificar a lenta condução a 40 por hora sugerem, no entanto, outras possibilidades.
- Baaaah, eu não corro... Eu não ando mais do que iiiiiiisso. Chegar, vamos chegar, então, para que correr, né? Eu vou na boooa, beeeem na booooa...
O casal chegou.

3 – o bem-informado
Pouco mais das duas da manhã, esquina onde quase toda noite convivem, harmoniosamente, bares, jovens descolados, bueiro, uma parada de ônibus e uma fila de táxis. O motorista quase não percebe a passageira entrar.
- Tava distraído aqui, ouvindo essa gurizada falar. Mas não se entende nada, né? Não dizem nada com nada, né?
O tom não é autoritário, discriminatório. É um tom de quem genuinamente gostaria de entender as palavras e as frases que entravam misturadas janela do carro adentro.
- Eles não parecem muito preocupados com nada nessa vida... – diz o taxista, espantosamente na mosca.
Dali até o destino, a conversa vai da novela das 6 à minissérie do JK, com direito a análises críticas e antecipações do tipo “o que vem por aí”. E quis saber também o que fazia da vida a passageira.
- Estudante? Professora? Dança? Ah, jornalista...
Na despedida:
- Avisa lá que o Sant’ana tá louco. Não dá mais.

4 – o desmemoriado
- A senhorita, por favor, me guia aqui por dentro porque trabalho lá na zona sul e faz tempo que não venho para esses lados.
A corrida é curta, mas realmente cheia de “vira à esquerda”, “vira à direita”, rótulas e vielas enganosas. Tudo bem, diz a passageira.
- Vou contar uma coisa que a senhorita não vai acreditar. Eu tive amnésia. Esqueci de mais de 40% das coisas – começa a contar o motorista.
Meningite, longa recuperação, vida de encostado, que ele não agüentou por muito tempo. Com a garantia do médico de que clinicamente estava bem, voltou a trabalhar no táxi. Sempre que, no ponto, pela rádio que coordena o seu trabalho e o dos colegas, ouve uma rua que a memória não traz, vai ao mapa da cidade e se apresenta à ela. E os amigos que não reconhece? Com eles revive as histórias das quais foi protagonista como quem ouve falar de uma terceira pessoa.
- Estou aprendendo algumas coisas de novo.
Naquela noite, (re)aprendeu o caminho “aqui por dentro”. Eu ensinei.


*Não duvido que daqui um tempo mude de idéia e ache muito necessário ter de novo um carro. Ache realmente que vale a pena se incomodar com toda aquela papelada, legitimar o crime pagando seguro todo o ano, fora gasolina, manutenção e lavagens a cada 15 dias. Ou seja, gastar mais com um monte de plástico e metal do que comigo mesma. Mas, por enquanto, tudo o que disse naquele texto ali é verdade.



01 janeiro 2006

Virou mais um

Faltam 5 minutos para acabar o primeiro dia de 2006, eu preciso escrever algo aqui que marque a virada. Ainda vejo 2005 se afastando, como que de costas na estradinha, dá tempo...
Deixa eu ver, deixa ver... tem de ser algo não muito pessoal, esse blog não é pra isso. Ah! Já sei!

Tem uma frase que não me sai da cabeça. Que ouvi no documentário sobre o Vinicius de Moraes. Frase não, uma afirmação, uma corajosa afirmação:
- É melhor viver do que ser feliz.
Então, é isso. Eu, em 2005 ou para 2005, afirmo: é melhor viver do que ser feliz.

E porque há um ano inteiro pela frente para questionar certezas (mesmo as dos poetas), porque as perguntas abrem mais possibilidades e eu prefiro as surpresas (e principalmente porque eu quero mais), eu, em ou para 2006, troco a afirmação pela interrogação: é melhor viver do que ser feliz?

Bem juntinhas

Bem juntinhas
eu e a Búio