23 junho 2010

Roubos (3)

"Tudo o que fiz nestes últimos anos (nestes últimos anos apenas? Não é desde sempre?) me interessou, mas não era nunca o que me interessava mais. (...) Esta cegueira de mim mesmo, de meu "ser profundo", foi alimentada, ampliada, pela dispersão nas coisas secundárias. (...) A ideia do número um - do essencial - hoje me parece um pouco falsa. Há um essencial do qual, digamos, há vinte anos eu fugi? A verdade é que me deixei levar demais por coisas secundárias; eu me vi na teia de relações semiprofissionais, semi-amigáveis; dispersei-me. (...) O que significa meu desejo de tornar-me "profundo'? (...) Pois é, eu queria ser ao mesmo tempo o monge meditativo em sua cela e o grande viajante intercontinental, o revolucionário chama-ardente-do-futuro e o eremita contemplativo do eterno, o asceta e o luxurioso."

roubado do livro "X da Questão", de Edgar Morin. Por que "roubar"? Aqui.

Edgar Morin... euhein?! Pois é... leituras pretensiosas... menos, menos.
Eu gosto mesmo é de ler horóscopo.

19 junho 2010

Cutuco x modus operandi

A bonita capa da ZH de hoje me lembrou algumas coisas, entre elas, o fato de eu gostar das edições de sábado dos jornais.
Talvez porque grande parte dos jornais reserve o sábado para os cadernos de Cultura. Mas isso poderia parecer pretensioso de minha parte. Adoro viajar na maionese com os cadernos de cultura dos jornais, mas é verdade que há muito tempo não os leio. Suspeito, inclusive, que eles nem sejam mais esses passaportes para viagens na maionese.
Talvez eu goste das edições de sábado porque as manhãs de sábado são preguiçosas, quando o tempo passa diferente, e assim ler não precisa ser rápido. Mas as de domingo também o são, e não gosto tanto dos jornais de domingo como gosto dos jornais de sábado. E eu nem poderia dizer que os jornais de sábado são edições melhores, porque não são. Sei bem como são feitas na sexta-feira. A toque de caixa, apenas para constar, preocupados que estão todos com as matérias especiais do jornal de domingo - que, aliás, começa a circular na cidade nas tardes de sábado, outro fator que denota a (nenhuma) importância que as pessoas dão para as edições de sábado, com um tempo de vida tão curto.

Talvez eu tenha lembrado que eu gosto dos jornais de sábado porque hoje chove muito em Porto Alegre, e há um prazer muito próprio em ler um jornal com a chuva lá fora e uma caneca de café aqui dentro. Enfim.

Então... a edição de sábado está fadada ao esquecimento não fossem os fatos. E não foram poucas as vezes que eles teimaram em acontecer para revirar a rotinas das redações nas sextas-feiras. Como ontem, na morte do Saramago. E aí temos essa bonita capa de ZH.
E isso me fez lembrar como o jornalismo pode ser desconsertante do ponto de vista humano: é justamente na perda, na dor, no fato que ninguém desejaria que acontecesse, é justamente aí que ele se valoriza, se renova, se faz necessário (ou se acha que se faz necessário...). Quer belas capas de jornais? Pense numa tragédia.
Desconfortável, não?

Eu ainda acho que os critérios que definem o que é apenas um fato e o que é um fato e também uma notícia deveriam ser repensados. Tenho uma vaga lembrança de um xerox lido durante o curso de jornalismo, cujo texto abordava os critérios para definir o que é notícia. Não consigo lembrar de todos - putz! - mas morte estava lá. Minha vaga lembrança permite, ainda, dizer que se tratava de um texto já velho para a época. Tipo início do século 20.
Para mim, é incrível que os jornais, a grosso modo, continuem a noticiar se valendo de critérios tão antigos. E não sei se é consciente. Parece que apenas não se mexe nessa "instituição" - quando todo o resto da vida já questionou e continua a questionar todas as "verdades".
Por que uma boa notícia, algo que nos faça sorrir, que nos inspire, tem peso menor nas páginas de jornais (e no interesse dos leitores)? Não sei. Eu até acho que um jornal se diferencia de outro quando justamente define o que vai ser notícia na sua edição do dia seguinte usando a intuição: um pé aqui, na "instituição", e outro lá, na vida invisível-mutante. Sensibilidade. Mas há espaço - e tempo - para sensibilidades no jornalismo diário? (talvez nas edições de sábado... rsrsr)

Mas o que eu queria dizer - coisa que a capa de hoje, com Saramago, me lembrou - é que posso imaginar a vibe que (no mínimo) por instantes a redação experimentou ontem, sexta, ao saber da morte do escritor. Planejamentos caíram, outros precisaram ser feitos. Mudanças de rumos, e rapidamente.
E isso é jornalismo: vibrar com os fatos. E é desconsertante porque, daqui a pouco, tu, jornalista, sem perceber, está vibrando na redação, eufórico, por causa de uma tragédia. Vi isso, e acho que senti isso, várias vezes, até me dar conta de que eu estava quase feliz (?) diante a possibilidade de um grande texto, diante uma grande foto, diante uma grande página, uma grande capa e uma grande edição baseadas... numa tragédia, na dor, numa morte, numa perda...
Claro, não se trata exatamente do fato que envolveu Saramago, um senhor que já tinha lá uma considerável idade... E morte, como bem sugeriu ele em seus livros, faz parte (ou não, como em Intermitências da Morte, um livro que achei tão chato que não acabei).
Mas é que lembrei do que pensei quando acompanhava a cobertura jornalística dos desabamentos no Rio ou do terremoto do Haiti. Os jornais tiveram assunto até não poder mais, o que alivia muito os pauteiros (quando um fato se impõe, vc não precisa inventar pauta. Quer dizer, se vc conseguir surpreender nessa hora, bem, vc é diferenciado, porque a rigor não precisa se "puxar"; os fatos garantem as edições).
Especialmente na tragédia do morro do Bumba, fiquei pensando na caravana de repórteres que para lá se deslocava todos os dias. TODOS os telejornais da Globo, só para citar UMA emissora, colocavam gente lá. Chegou uma hora em que ficou claro que o número de jornalistas era maior do que as notícias, e as informações se repetiam, e a tragédia era espremida até não poder mais. Então, eu pensei: nenhum jornalista sentiu vontade de AJUDAR aquelas pessoas, ao invés de ficar repetindo pruma câmera mais do mesmo? Será que nenhuma emissora, nenhuma redação repensou seu papel naquele momento?

Eu penso isso porque tenho certeza de que o jornalismo moderno ("imparcial", das megas corporações) provoca um (d)efeito colateral bastante questionável ao profissional que atua nele: o modus operandi de eterno espectador, de alguém que sempre se coloca à parte do fato, para poder contá-lo/registrá-lo, sem se envolver, a salvo dos erros, das dificuldades, das dores de quem VIVE os fatos e está efetivamente dentro deles.
Haverá um momento que essa capacidade humana fará falta à vida dele. A vida íntima dele mesmo, longe das redações. A menos que ele não se importe de confundir/mimetizar para sempre sua vida com o papel construído nas redações/na profissão, que o protege da (sua) vida real.

Agora na Copa do Mundo, outro exemplo. Mesma sensação: jornalistas batendo cabeça, de tantos que são num evento que não gera tantos fatos assim - mas será que não gera? Ou é de novo o modus operandi?
E dá-lhe Dunga fechando treino, piorando tudo. Vuvuzelas, jabulani, cala a boca Galvão. Deu né? Qual o papel de um jornalista na Copa?
Você não fica com a sensação de que, por tudo o que foi mostrado até aqui, não precisava tanta gente lá? Textos-crônica, show de imagens.... precisava ter ido lá pra isso? E o pior é quando eles fazem da presença deles lá, ou da parafernália tecnológica disponível, a notícia em si. Oi? Jornalista entrevistando jornalista. Oi? E essa tendência de apresentar as coisas em tom coloquial, em primeira pessoa, como se fosse um blog ou um orkut? E essa tendência tadeu-schmidt de descrever partidas?
Acho que tem espaço para tudo, o problema é quando o "diferencial" vira regra. Daqui a pouco o diferente vai ser o formalismo. O jeito voz-do-brasil-de-ser vai virar cult.

E aí fiquei pensando também num fato que foi noticiado com questionável economia nessa Copa: a morte da neta do Mandela. Putaqueopariu. O cara é um personagem-símbolo do país que sedia a Copa, por quatro anos se espera por isso, e aí no dia da abertura do evento a neta do cara MORRE num acidente de carro na saída da festa, e isso é menos relevante do que as imagens do Black Eyed Peas no palco!??!?

Ó, não é o caso de, aqui, morte ser critério para um fato virar notícia. Só penso que... Assim, do contato que tive e tenho com o jornalismo, guardo essa impressão, na qual confio: há algum potencial de notícia, de BOA história que precisa ser conferido em todo fato ou aspecto de um fato que parece "fora do lugar", que causa estranhamento...
O que não pode é, eu, jornalista que noticiei a goleada da Argentina, fiz piada com as vuvuzelas, analisei a derrota da Alemanha etc, na hora do cafezinho com os colegas ou quando tô indo embora pra casa, descansar, ver brotar em mim esse pensamento: "e a neta do Mandela, hein?".
E digo mais: se algum leitor/espectador viu essa inquietação brotar em si, sem encontrar resposta, o jornalismo/a imprensa perdeu a chance de se revalorizar frente a essa audiência.

Enfim.
Se esse pensamento/sensação brota, ainda que de forma bem sutil, pode ter certeza de que algo ali merecia atenção.
Nem toda sensação como essa gera uma grande notícia, uma grande história, mas toda notícia que faz diferença, que tem relevância numa edição começa com um cutuco assim.

Mas eu sei: é difícil sair do modus operandi.

Bem juntinhas

Bem juntinhas
eu e a Búio