02 março 2011

Roubos (6) - "especial"

Não fosse o criminoso atropelamento de ciclistas aqui em Porto Alegre talvez esse Roubos nem existisse. Esse Roubos veio do livro do antropólogo Roberto DaMatta, que li em função de um trabalho e agora parece ter mais relevância do que nunca.
Chama-se Fé em Deus e Pé na Tábua - Ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil (Editora Rocco). A expressão do título se refere ao fato de que vigoraria, no trânsito (ou no espaço externo a nossa casa), uma ideia de que é preciso uma certa proteção divina. Como as pessoas não confiam nas regras ou não confiam que as pessoas vão segui-las, o negócio é acelerar e seja o que deus quiser.
Na real, o DaMatta diz que o problema central é transferir para o outro a responsabilidade que é nossa... E q tb tem a ver com a ideia de que seguir as regras é coisa de babaca, bobo, pouco esperto. É evidente que, se todo mundo pensar que a regra não é para si e sim para o outro, nunca a regra vai funcionar. Então, lá embaixo, estão algumas das considerações do DaMatta sobre o jeitinho de pensar do brasileiro em geral.

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Ontem, eu fui à manifestação de repúdio à violência explícita do caso do criminoso atropelamento dos ciclistas. Fui por várias razões, mas nenhuma tem a ver com senhor que causou o atropelamento. Não caminhei duas horas pelas ruas da Cidade Baixa e do Centro, até a prefeitura, contra alguém em especial. Mas a favor de uma ideia mais ampla. Não acredito numa cidade que só pensa em carros. Ponto. Mudar isso não é fácil, e a gente precisa começar de algum jeito. Talvez caminhando, como ontem, em meio a milhares, recebendo apoio de tantos outros que se limitaram a assistir (acenar, aplaudir...) das janelas dos apartamentos, das calçadas, do parapeito dos viadutos.

Talvez eu tenha ido porque li DaMatta, e entendi o quanto é urgente a gente se dar conta de que o brasileiro não é o outro. Sou eu tb. Como ele disse (não no livro, mas na palestra que assisti), vivemos um momento especial: a sociedade está descruzando os braços. Descolando a bunda da cadeira. Talvez sobrem mais gritos do que conquistas efetivas, mas ainda assim vale mais a pena do que não tentar. Tá ficando feio não tentar, entende? Bonito é tentar.

E ainda sobre o atropelamento... fiquei pensando no fato de que todo e qualquer ato social - do mais amoroso ao mais violento - representa a sociedade inteira. Uma coisa não existe se ela não está antes no imaginário coletivo. Tipo.. inconsciente coletivo, sabe? É como se cada um de nós carregasse um tantinho daquele estranho sr.atropelador. É duro pensar assim, mas é. Daí, eu espero que todas as boas energias da caminhada de ontem tenham de alguma forma anulado as más vibrações do atropelamento.
Tudo o que se desejou de bom ontem tb está em cada um de nós.
Zero a zero. Bola no centro. Vamu pro jogo de novo. A gente sempre pode recomeçar melhor do que antes.

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Enfim, o Roubo da vez:
O QUE DIZ DAMATTA no livro Fé em Deus e Pé na Tábua - Ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil (Editora Rocco):

"Nossa principal contribuição é tentar democratizar a rua, fazendo com que ela, tanto quanto a casa, seja submetida a um código igualitário - ponto capital de toda sociedade republicana, liberal e democrática."

"Qualquer legislação está destinada ao fracasso caso a sociedade que a recebe dela necessite ou esteja preparada para suas inevitáveis implicações disciplinadoras."

"... pode-se sugerir que o tão propalado processo de modernização tem como centro um diálogo (áspero, violento, nervoso ou tranquilo) entre costumes ou padrões de conduta, como diziam meus professores de antropologia - regras inscritas no coração, como diziam Rousseau -, e leis escritas, ou seja, normas consciente e explicitamente feitas como remédio, receita ou resposta para certas situações e práticas sociais."

"... temos problemas com estilos nos quais os laços sociais (ou as situações) estejam fundados na horizontalidade, cuja expressão mais clara é a igualdade de todos perante uns aos outros ou a alguma coisa."

"A sociedade, com seus costumes, culpa - numa dialética autorreferenciada que previne a mudança - o Estado e o governo pelo que ela, obviamente, também não quer fazer."

"Mesmo com o fim da escravidão, persiste essa aguda consciência de lugar e de posicionamento social. Quem se pensa como sendo socialmente inferior sente-se, em certos lugares, como um transgressor. O terror de ouvir 'isso não é lugar para gente de sua laia, raça ou posição social!' corresponde à conjunção moderna de ter o direito de ir aonde quiser mas, não obstante, continuar preso a posições socialmente vistas como subordinadas."

"Na base dessas recorrentes expectativas de superioridade social que implicam um movimento irresistível de rebaixamento dos outros e que permanecem fiéis a uma imagem hierarquizada da sociedade, estão congelados séculos de desigualdade - não apenas como uma consequência (ou resultado) da exploração econômica e política planejada, mas, sobretudo, como um modo de ordenar o mundo que ainda não foi devidamente criticado ou até mesmo percebido em suas implicações sociopolíticas."


"Nossa tese é a de que é preciso ter em mente o encontro que a modernidade e a democracia promovem entre hierarquia e igualdade para se entender o estilo pelo qual nós, brasileiros, construímos nosso espaço público e nele trafegamos."

"Tudo se passa como se, no Brasil, não tivéssemos feito a necessária transição entre obedecer a pessoas e à lei, o que configura coisas muito diversas. "

"... quem está no topo ou no fundo não precisa seguir normas, como é típico de sociedades aristocráticas, onde canalhas, celebridades e nobres (que vivem desafiando o sistema e seguem - ou tentam seguir - regras próprias) têm algo em comum: o notável desdém pelo que só os inferiores ou subordinados devem obedecer."

"Tamanho, força, poder, preço, beleza, limpeza, conservação - tudo enfim que, no Brasil, se traduz como 'aparência' determina um istema no qual o condutor do veículo tem um lugar central no trânsito e o pedestre, um lugar secundário e inferior."

"O fato concreto é que o trânsito põe a nu nossas receitas herárquicas e sua inaplicabilidade no mundo moderno."

"Tal constatação nos leva a um reiterada e inevitável discussão daquilo que, para nós, é certamente a maior contradição da vida moderna brasileira. O encontro complicado, que já chamei de dilema, de espaço público construído como igualitário, mas sobre o qual condutores de veículos e pedestres atual com expectativas hierárquicas. Um palco desenhado para cidadãos que, entretanto, nele atuam como aristocratas."

"Observamos que o uso do verbo 'respeitar', aplicado a sinais, pessoas, pedestres e outros veículos no trânsito, revela o lado indeciso de uma sociedade que se recusa a encarar a igualdade como um princípio central da democracia e como o único valor capaz de ordenar certas situações da sociedade moderna."

"Entre a visão popular, segundo a qual obedecer é um sinal de inferioridade, e a visão aristocrática ou de elite, para quem o desobedecer é uma rotina que define os superiores e mandões, reside a indecisão e a impunidade como valores fundamentais do sistema."


Por que roubar? Explicação aqui.

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