06 agosto 2006

E quando entra minha amiga nessa história?

Teve uma vez que entendi um filme pelos olhos de uma amiga. Estávamos no cinema, lado a lado, a história se desenrolava na tela há algum tempo e foi só quando percebi sua emoção discreta (quase sem deixar marcas depois que as luzes se acenderam), já no final do filme, é que entendi a força dele.
Eu disse a ela que escreveria sobre isso no blog logo em seguida, o tempo passou, ela foi pra São Paulo e, porque me ligou ontem, lembrei da vontade de contar o episódio aqui.
Há várias produções, principalmente recentes, que se valem da brincadeira da metalinguagem para pôr um filme dentro de outro. Estrela Solitária é francamente isso – e foi nesse filme que a reação de minha amiga valeu o ingresso.
Estrela Solitária é (aparentemente) ingenuamente isso: um filme dentro de um filme. O recurso nem parece importante, porque é a história de um ator que larga as filmagens de uma produção repentinamente, num surto, para rever suas escolhas, rever o caminho percorrido – aquele batido acerto de contas com a gente mesmo, nada raro em muitos filmes. E ele chuta tudo para o alto, porque esse tudo não o motiva, não lhe preenche mais, e vai reencontrar o passado, que significa uma mãe, uma paixão e dois filhos deixados para trás numa cidade, por sua vez, ainda mais perdida, no meio do nada. E, como o próprio personagem, o espectador realmente se fixa nesse lado do filme e põe à parte, em segundo plano, as filmagens – a dificuldade da produtora, do diretor de terminar a obra sem a presença do ator principal.
A necessidade da finalização do filme está presente em todo momento, na figura, inclusive, de um cara (advogado? Não lembro) que vai atrás do personagem/ator para que ele volte e termine as filmagens. Como o personagem, o espectador pensa toda vez: “Que merda, deixa ele resolver o passado dele, porra, deixa ele reparar os erros, fazer as pazes com os filhos e tal”. A gente fica nessa torcida até que se dá conta de uma sensação sutil, mas que se agiganta sem volta: qual filme está dentro de qual? Qual é a História dentro da história?
Evidentemente, era na “vida real” que se concentrava a carga emocional do filme: o reencontro com a mãe, com a (ok...) mulher de sua vida, a descoberta dos filhos e a sensação, claro, de que fez tudo errado (mas como saber disso antecipadamente? Depois da vida percorrida, fica fácil, né?). Era ali, nessas cenas, que o personagem e o espectador sofriam. Era para aquilo tudo que esperávamos a virada, o desfecho, o grande desfecho. E enquanto ele não vinha, segurávamos todas as emoções que estávamos experimentando no escuro. Só que o desfecho não vem. Não há nada mais o que fazer na “vida real”. O personagem revive todo aquele passado como num sonho (e a fotografia do filme por vezes lembra uma atmosfera onírica, um silêncio como que quando mergulhamos no fundo da piscina e nada mais é ouvido, só há nós mesmos e os personagens de nosso sonho). Até que, depois dessa espécie de regressão, ele tem de voltar e cumprir seu contrato com a “vida de mentirinha”. Tem de voltar às filmagens. Ele acorda para a vida que escolheu. Todo o resto fica como estava (claro que não fica, mas não é esse realmente o efeito de um sonho? Tudo continua igual aqui fora, mas algo em você mudou depois dele). Então, o espectador percebe que vinha torcendo por algo impossível: mudar o passado. Dito assim fica até superficial, mas não é, até porque já sobraram talento (dos atores), sensibilidade (sua, se vc não é um idiota) e tempo suficientes para que o espectador tenha se identificado com essa angústia de simplesmente aceitar o que não pode ser mudado.
E quando entra minha amiga nessa história?
Bem, o personagem volta para terminar o filme para o qual foi contratado. E a cena do filme dentro do filme é a de sua despedida da mocinha. Eles se despedem apaixonadamente. Ele terá de deixá-la, com coragem, desapego, uma força de herói (que ele não teve na vida real). Uma cena boba, de um filme de sessão da tarde, mas o estopim perfeito que faltava. Explico: foi nesse momento que vi minha amiga se emocionar. Eu também me emocionei nessa hora. E arrisco dizer que mais gente se emocionou na sala só nesse momento. Nesse momento, na “história de mentirinha”, é que nos permitimos soltar um pouquinho da emoção contida durante todo o tempo da “história de verdade”. Por que chorar só no momento que parecia menos real? É evidente que a emoção geradora das lágrimas não tinha rigorosamente nada a ver com a história da mocinha, que sequer conhecíamos. Talvez porque ali o choro era mais fácil, mais inofensivo, menos revelador de nós mesmos. Ali, com a mocinha, o choro nos atingia menos.
Foi aí que percebi a impossibilidade de definir que filme estava dentro de qual – e mais: definir que história pessoal está dentro de qual em nossas vidas. Foi aí que percebi como enrolamos a nós mesmos quando se tratam de emoções. Como nos atrapalhamos com escolhas emocionais, exatamente como o personagem do filme. E, então, acho que, se tive a intenção, no início do filme, de julgar o personagem ou suas escolhas, desisti – como acabaram fazendo a mãe, a ex-mulher, os filhos, o advogado e ele próprio.

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