15 janeiro 2006

Zanzando

Tem um caminho, um trecho de calçadas tão familiar, em que o ir é tão automático, que comecei a olhar mais vezes para o lado. E fui juntando uns detalhes. De quadra em quadra, percebê-los ajuda a passar o tempo até vencer todo o trecho.

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Bem no início, tem um restaurante daqueles que escreve com giz, no cavalete negro, “hoje mocotó”. Daqueles em que o cara do caixa fica entrincheirado, como numa casa-mata, um amontoado de pacotes de salgadinhos, balas, chocolates, cigarros esquizofrenicamente organizados. Com sorte, você vê o rosto do cara, mas não sabe se ele está nu ou de saias. Mas o detalhe aqui está na mesa colocada à beira do piso lavado com vassoura, água e sabão a cada fim de almoço, quase se precipitando à calçada: sobre a toalha de plástico, uma folha de caderno colada num papelão, apoiado no porta-guardanapo de papel, identifica “reservado - chefia”.

2

Duas quadras depois, um prédio com jeito de abandonado é um açougue ativo. Paredes cinzas, chão coberto por um piso que me lembra o da casa da minha avó materna, daqueles com desenhos geométricos desbotados numa textura que não vê cera há tempos. Cor ali só o rubro sanguinolento das postas de carne penduradas nos ganchos dentro do balcão envidraçado e refrigerado – daqueles que pode ter sempre uma mosca pousada no cantinho interno, exibindo seu ventre para quem tenta escolher um pedaço de churrasco. O detalhe aqui? O açougueiro. Ele é discreto, quase nunca está por ali, surge de repente somente quando alguém aparece interessado em seu produto. Não está de avental. Mas de jaleco, num branco limpo impressionante. Cabelos grisalhos aparados, óculos, gestos medidos. Passaria tranqüilamente por médico, um dentista, eu acho.

3
Os próximos três estabelecimentos que me chamam a atenção estão na mesma quadra, um ao lado do outro, praticamente. Na ordem, primeiramente uma vitrine que desmente completamente a placa luminosa sobre a entrada. Expostos, produtos que vão de guarda-chuva e sobrinha a bonequinhas de plástico, passando por touca térmica e um kit chinelos-toalha-roupão. Um bazar? Nada. Uma lavanderia. Se espiar pra dentro, lá no fundo estão as máquinas. Ao lado do bazar, ops, da lavanderia está, claramente, uma padaria. O cheirinho irresistível a qualquer hora do dia não deixa dúvidas. E isso não é força de expressão: já passei por ali em horários bem diferentes, e os pãezinhos frescos estão por lá, atiçando olfato e fome. O nome da padaria? Cheiro de pão. Vizinha aos pães, uma sorveteria que parece esquecida ali pelos anos 50, a começar pelo nome – Delícia. O piso tem o brilho e a frieza dos azulejos que cobrem as paredes. Você parece estar entrando em um banheiro. O balcão, em azul, e as mesas, em cinza, são de fórmica. As cadeiras, cor de creme, são de plástico, naquele design em que assento e encosto são uma coisa só, num desenho arredondado, sugerindo que seu traseiro encaixa perfeitamente ali. A máquina registradora no caixa (que se destaca no balcão por ter uma proteção de vidro e uma plaquinha pendurada com correntinhas onde diz “Caixa”) é mesmo uma máquina registradora: cor de chumbo, enorme, robusta, em que o preço a ser pago é mostrado no cantinho superior, com números, em branco, num fundo negro, que giram unidade a unidade, sabe? Sempre que passo por ali, tenho a impressão de que o Nelson Rodrigues poderia ter escrito uma parte de Engraçadinha para aquele cenário.

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A próxima parada é um minimercado. Caixas de madeira para as frutas, edições do jornal mais popular da cidade, cuca feita em casa, balcão dos picolés e a oferta do dia dividem a atenção dos passantes na porta do estabelecimento. Nada de extraordinário, né? Deu para imaginar de que tipo de armazém estou falando. Nada me faria citá-lo aqui, exceto por um detalhe. Pendendo do centro do batente da porta, preso a uma corrente que o deixa a meia altura do chão, cadeado ali, adivinha o que é? Um isqueiro. O dono do lugar deve ter cansado de, com tanta opção nas prateleiras, atender quem chega ali perguntando apenas “Tem fogo?”. O armazém fica em uma esquina, a uns passos de um viaduto, que também tem um detalhe. Não vale um texto só para ele, mas é bom dizer que se trata do vão debaixo de viaduto mais perfumado (ou fedorento) da cidade. É que um ambulante faz ponto ali todo dia. E ele vende incensos. Dezenas deles.

5
Estamos perto do destino e ao menos mais dois registros julgo valer a pena. Um deles é outro armazém, aos moldes do descrito anteriormente, exceto pelo fato de o dono preferir exibir flores e não comida. A atração ali é Blanc, um cachorro que carrega no pescoço uma plaquinha de metal com seu nome e origem. Vive solto por ali. Acompanha o movimento, indiferente aos “ó, que bonitinho” dos pedestres. Deitado na beira do piso com as patinhas dianteiras penduradas, apontando para a calçada, o semblante é de quem se sente dono daquele trecho da avenida. O armazém fica ao lado de uma pet shop, que provavelmente Blanc nunca freqüentou, nem precisa. Soberano a tudo é o que ele parece.
Por fim, vale contar ainda aqui da loja de produtos ortopédicos duas quadras adiante. Ou melhor, não vale. Ou você confiaria em uma loja dessas que exibe na porta um esqueleto vestido com um jaleco e um estetoscópio?

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