26 abril 2006

As Bonecas Russas

Tem uma poesia do Affonso Romano de Sant’Ana que relaciona a infinidade de palavras que temos à disposição com as pessoas pelas quais passamos nessa vida – e podia-se dizer aqui o contrário: as palavras pelas quais passamos e as pessoas que temos à disposição. Meio lamentoso no início do texto, ele não entende como nos contentamos com a sonoridade das primeiras e o colorido das vestes das segundas, sem pararmos para conhecer quem são todas estas e o que querem realmente dizer todas aquelas. Com uma pitada de angústia, mas conformado e, sobretudo, maduro, termina o poema dizendo algo como isso: “não é possível esgotar o dicionário nem amar completamente tudo o que encontramos”.
E eu lembrei dessa parte depois de ver no cinema As Bonecas Russas, continuação de um filme que está ali no meu profile como um dos preferidos: O Albergue Espanhol.
Tem gente que está dizendo que o Bonecas é ruim. Ou, um pouco diferente: que o Albergue é melhor. E é, mas o que é desagradável no Bonecas o torna tão bom como o seu antecessor. Tudo bem que parece meio lento, acho que tem a ver com o fato de que o Albergue contava a história de várias pessoas, e essa continuação se concentra mesmo no personagem principal. Mas até isso – mais espaço para o personagem principal - faz sentido. Tem uma hora na vida que não conseguimos dar conta do tamanho que tomamos, e é preciso abrir mão de algumas dessas várias coisas sob pena de não aproveitarmos bem nenhuma delas. Vou explicar.
O espectador que compara o Bonecas com o Albergue está, na verdade, comparando o que realmente somos com o que imaginamos para ser. O Bonecas é o Albergue que se confronta com a hora h, com o primeiro dia do resto de nossas vidas, que se confronta com as escolhas. Ou seja: tem de cruzar a linha para o lado de lá e se comprometer com algo. Dá para chamar de amadurecimento também. Aí, não tem comparação mesmo com o Albergue Espanhol, que mostra o inverso disso: todas as nossas possibilidades. O saboroso do Albergue é que ele legitima nossa ânsia por liberdade, a gente compartilha com o personagem a deliciosa descoberta de que podemos deixar para trás o que não nos diz respeito a fim de procurar aquilo que faz sentido unicamente a nós mesmos. Somos os heróis numa jornada.
O indigesto no Bonecas é que essa liberdade presta contas: “e aí, o que vai querer depois de experimentar tanta coisa diferente ou ao menos tomar conhecimento, pelos amigos que seja, de que elas existem? Ou vai ficar esperando a próxima boneca que vem, exatamente como no brinquedinho russo?”. No Bonecas, chegamos lá: de herói a rei de nossa jornada, e a maioria pode pensar, como agravante, “era só isso mesmo?”. O Bonecas é assumir o que nos tornamos, é parar de ensaiar, é a angústia das definições, do ter de abrir mão de algo, do apostar sem certezas, tudo bem embaladinho pela urgência do tempo. E, se o espectador com seus lá 30 anos sai meio assim/assim do cinema, achando que não gostou, está provando que o filme é tão bom como o Albergue. Não era para gostar, era para se incomodar mesmo – até porque o poeta está aí para nos passar a mão na cabeça, paternal: “não é possível esgotar o dicionário nem amar completamente tudo o que encontramos”.

Importante: As Bonecas Russas não é nada melodramático como sugere esse meu texto (eu que exagerei, me perdoem!). Pelo contrário: tem bom humor tanto quanto O Albergue Espanhol. Aliás, rir da história (leia-se: da gente mesmo) talvez seja uma boa prova de maturidade sem ranço, aquela que não impede a gente de mudar de idéia apesar de todas as escolhas feitas e anunciadas.
O filme, e muito menos o texto, não é sobre permanências ou comprometimentos do tipo “até que a morte nos separe”. É sobre avançar casinhas, pular de nível, se dar uma promoção na carreira da vida... (cruzes, que brega...). Como é que faz isso na vida real? Sei eu. Até porque, se fosse fácil saber, não teria virado filme.

3 comentários:

Carlito disse...

Alta Fidelidade e Um Grande Garoto

Lo disse...

Eu explico o carlito. É que a associação q fiz entre o Albergue e o Bonecas é a mesma que o Carlos faz entre aqueles filmes ali que ele citou. Quer dizer, nem foi ele quem fez essa associação na primeira vez. Quem foi mesmo, Carlos?

Gláucia disse...

Eu não vi os teus filmes, mas não achei o post assim 'como', sabe? Adorei a análise. Os filmes do Carlito eu vi. Fecha bem legal com o que estás dizendo.
bj

Bem juntinhas

Bem juntinhas
eu e a Búio