15 abril 2006

Guisadinho

Todos os dias passa um. E talvez seja o mesmo. Até porque, tão à margem, poucos (para não dizer ninguém) interessam-se por sua cara ou identidade. Sempre à noite, ou madrugada alta, e o silêncio dessas horas parece dar um tom solene, dramático à cena.
Já acordei por volta das 4h com o barulho feito por eles.
Ou ele. Vem nas segundas, quartas e sextas porque é dia do lixo orgânico. E nas terças e quintas também, vezes do lixo seco. Não é gari por profissão, mas vive do que eu e você julgamos não valer mais nada. Está fazendo “compras”. Ouço as rodinhas trepidarem o carrinho de supermercado na calçada – adotou o veículo por praticidade, claro, mas é inevitável a absurda analogia: se a minha rua – e provavelmente muitas outras – é o corredor, o detalhe mais chocante é que as prateleiras desse “súper” são as lixeiras de prédios e casas.
Sim, eu me viro para o lado e consigo voltar a dormir. Vai ver acho normal, né?

***
Lembrei de outra coisa, que me deixou pequenininha.
Eu não faço rancho de supermercado. Principalmente, porque não cozinho. Às vezes, cozinho, mas tem de ser por diversão. Então, não adianta procurar na minha casa arroz, feijão, carnes congeladas, “mantimentos”, como diria a minha mãe. Sim, a minha geladeira tem crises existenciais sobre qual sua função no mundo.
Ainda assim, eu vou várias vezes ao super comprar – além de frutas, leite, erva-mate e “a-coisa-q-estou-com-vontade-de-comer-aquela-hora” – bobagens. Esses tempos, lá estava eu, na beirinha do caixa, com um pote de uva-passa branca. Bem faceira. Eu adoro uva-passa, principalmente branca. Sim, estava só com o pote. Ah, e talvez carregasse comigo também uma garrafa de água. Mas só o pote era quase R$ 4. Juro. Uva-passa não é um troço barato. Na minha frente, uma senhora. Estatura média, mas forte, rosto castigado por traços que não me pareciam de velhice e um semblante frágil. Frágil não, sem vitalidade. Gola um tanto puída da camisetona que ajustava-se até as ancas e depois pendia como uma pequena saia sobre a calça um tanto curta, deixando à mostra os chinelos com pés de unhas mal-pintadas. O cabelo estava mais pra domado do que pra preso.
Dinheiro apertado na mão, ela passou arroz, leite, um ou dois tomates, uma cebola, mas o guisadinho ficou descongelando na sua mão. Não ia dar. Faltaria R$ 0,50 ou menos. A palma quase encobrindo toda a embalagem, ela olhou para a carne, olhou para a tela que exibia o valor total já alcançado com as compras e então desistiu. Empurrou o pacotinho para longe. Ia deixá-lo.
Céus.
Dei o dinheiro a ela. Ficou surpresa, mas aceitou. Acho que balbuciou um obrigada, sem me olhar nos olhos – atitude que me pareceu vergonha. E foi embora com “todas” as suas compras.
Eu não sei se ela era realmente pobre ou se apenas tinha calculado mal quanto gastaria naquela manhã. Não sei se ela ou uma criança estava passando fome aquele dia, se justamente aquele era o dia mais esperado da semana, porque iam comer carne depois de muito tempo, ou se o guisadinho era pro cachorro de uma madame. Eu não sei se ela podia estar nas ruas, de madrugada, com carrinhos de supermercado, como aquele que me acorda às 4h.
Só sei que, até adormecer aquele dia, fiquei pensando na minha frescura de uva-passa, custando quase o dobro do preço daquelas gramas de guisadinho.

4 comentários:

Jana Jan disse...

Descobri dia desses teu blog, Loraine.
;p
Assim, a equação de quanto gastamos com nossas frescuras x o quanto pessoas gastam com necessidades mais básicas não tem como resolver. Não por aqui. Sinta-te feliz por teres feito com que a senhora levasse a carne para casa.

Lo disse...

oi, Jana!
Não tem muito jeito mesmo essa estranha equação, né?
bj

Carlos André disse...

Fica assim não.
Um dia passa

Lo disse...

Boa, boa, Carlos André!

Bem juntinhas

Bem juntinhas
eu e a Búio