30 abril 2006

Superpoderes

Fiquei sabendo que até 1935 o dia das mães não era oficial no Brasil. Meus pais nasceram em 39. E nasceram no interior, não, na periferia de Guaíba, ou seja, um tanto longe do Brasil dos trópicos, aquele que conseguia acompanhar e reagir razoavelmente aos acontecimentos do mundo. E já que a instituição de uma data como essa não é lá um grande acontecimento é de se imaginar quão mais tarde Guaíba descobriu o dia das mães.

Mas, ainda que a data tivesse chegado aqui instantaneamente, meus pais não foram os primeiros filhos das minhas avós. Isso quer dizer que tios meus tiveram de aprender a dar presentes no dia das mães para a mãe deles – minhas avós. E a vida destas um belo dia foi interrompida com a novidade, com a surpresa da homenagem (ok, não tão surpresa assim). Enfim, foram alçadas à condição de seres oficialmente especiais quase que de um domingo para outro. Estranho. Estranho me dar conta de que algo perfeitamente encaixado no calendário e na expectativa de famílias foi apenas uma invenção à qual as pessoas tiveram de se adaptar.

Tudo bem que isso vale para o controle remoto, para o CD, para o celular. Minha sobrinha de 15 anos, por exemplo, surpreendeu-se ao saber que as pessoas tiveram de se adaptar (com extrema facilidade, é verdade) ao controle remoto. Acha que as TVs sempre vieram com ele. Mas a estranheza que ela sentiu ao saber que não vieram é um pouco diferente da minha agora, eu acho. Uma coisa é você estranhar a ausência do controle remoto no mundo, outra é você se desconfortar ao perceber que até 1935 não se esperava os segundos domingos de maio para dizer o que se sentia pelas mães. Ainda que pareça ingênuo eu sugerir que, hoje, ninguém usa outro mês ou domingo para isso, não trapaceie: instituir um dia, que traz um clima, uma trégua, um cessar-fogo, uma pré-disposição para o momento “família-feliz”, ajuda bastante.

O problema é quando a instituição é um fim em si mesma. É quando não há algo a ser dito apesar da oportunidade. Quando não há nenhum sentimento represado à espera da chance de dar aquele abraço na manhã de domingo, depois de escovar os dentes e limpar o rosto – minha mãe sempre fez questão –, mas ainda de pijama. Então, é estranho como algo tão enraizado entre a gente seja sentido, paradoxalmente, de um modo tão distante. De um modo estranho, no sentido de externo mesmo, que não reconhecemos. Uma inversão total, porque o dia das mães foi inventado como uma homenagem, genuinamente emocionada. Foi coisa de uma americana que havia perdido a mãe e tal.

Perdido a mãe. É isso!

Nesse dia das mães, e a partir dele, o mais generoso e sublime presente que eu poderia dar à minha - sempre que olhar para ela, sempre que estiver com ela - seria conseguir perceber apenas suas qualidades. Eu queria ser dotada repentinamente de uma capacidade de percepção tão distorcida que não reconhecesse as sombras de seu temperamento. Apenas a mãe iluminada. Apenas a mãe que vi nas noites enfermas da infância, a mãe dos lanches no fim de tarde na praia para a mesa cheia de amigos da adolescência, a mãe dos bilhetinhos de incentivo nas cinco manhãs de provas do vestibular, a mãe que passa a mão no meu rosto repetidamente, ansiada por não conseguir dar conta de minhas tantas lágrimas por tantos motivos, a mãe que liga para perguntar da gripe que eu nem lembrava mais que tinha, a mãe que a cada escova que faço segura meus cabelos no alto da cabeça para sugerir um penteado parecido ao que ela usava quando tinha a minha idade, a mãe do brilho no olho quando um conhecido diz que sua filha é parecida com ela.
Eu juro que queria isso: uma visão tão positivamente seletiva e condescendente como só consegue ser a lembrança saudosa que nos enruga o peito quando pensamos naqueles que já se foram e continuamos a amar.

O ideal seria aceitá-la inteiramente como ela é, eu sei.

Quem sabe no segundo domingo de maio de 2007?

Um comentário:

Ane Meira disse...

O mundo era mais legal quando eu presenteava minha mãe com uma rosa de papel, colorida com lápis de cor vermelho, contornada por canetinha, com uma frase curta e banal, escrita com letrinhas trêmulas, mas cheinhas de sentimento.

Bem juntinhas

Bem juntinhas
eu e a Búio